10 do Mês — Outubro de 2020
Escute aqui: https://open.spotify.com/playlist/5sHNXgDpe81iBb4qwuhFnw?si=vamA864IRZWqzOKGX81RDA
Antes mesmo de que a Georgia e a Carolina do Norte terminem de contar os papeizinhos para ver qual velho gagá vai comandar a maior máquina de guerra da história, colocamos no ar o 10 do Mês de Outubro! A seguir você vai ler sobre 10 faixas do mês que você não pode deixar de ouvir agora que o dia das bruxas já ficou para trás.
Outubro foi um mês com tantos lançamentos interessantes que nem teve graça. A folha que eu uso para anotar o que quero ouvir conforme vou descobrindo, e que com frequência chega ao dia 30 metade vazia, foi quase insuficiente para as anotações desse mês.
Talvez a galera veja outubro como a última boa oportunidade de lançar um disco a tempo para as listas de melhores do ano. Ou então talvez eu não tenha calibrado direito meu radar e tenha anotado coisas que não daria tempo (ou não valeria a pena) ouvir? Pode ser também.
Em todo caso, lá pelo dia 30 eu percebi que daria para montar essa playlist de uns três jeitos completamente diferentes. Seria necessário um filtro adicional, e minha primeira intenção foi fazer uma playlist good vibes: só coisa alegre para dar um gás nessa época difícil. Mas isso teve alguns problemas.
Primeiro que não tinha tanta música alegre assim. Segundo que eu já me acostumei tanto a fazer playlists extremamente variadas (para não dizer absolutamente incongruentes) que já não sei fazer diferente. Mesmo assim, tentei escolher faixas que tivessem algum tipo de “energia”. Mesmo com mais esse filtro, não foi fácil escolher só 10 dessa folha aqui embaixo:
Menções honrosas:
Arp Frique — Minina Bem Li: EP de um produtor holandês que conta com um cantor cabo-verdiano (Americo Brito) e uma cantora de Gana (Mariseya) para soltar quatro faixas dançantes e interessantes de um estilo que parece um disco retrô com toques mais modernos.
HHY & The Kampala Unit — Lithium Blast: Projeto do artista Jonathan Saldanha, radicado no Porto, com músicos de Uganda, essa estreia lançada pelo Nyege Nyege Tapes mistura dub, percussões africanas e música eletrônica de maneira parecida com o Nihiloxica. Bem doidão,
Jonathan Tadeu — Intermitências: Quinto disco cheio do cantor e compositor mineiro Jonathan Tadeu, referência absoluta do rock triste. Acompanhamentos suaves e melancólicas de guitarra, teclados e baterias eletrônicas, e letras sobre a falta de graça do dia-a-dia com as quais infelizmente é fácil se identificar.
Kaki King — Modern Yesterdays: Há virtuosos da guitarra que tentam tocar o máximo possível de notas por segundo, e há virtuosos como Kaki King, moça estadunidense que usa sua técnica embasbacante em uma variedade de gêneros musicais e instalações artísticas. Seu nono álbum é lindo e tranquilo, com sons que você não imaginia que uma guitarra/violão seria capaz de fazer.
SPAZA — UPRIZE! (Original Motion Picture Soundtrack): um coletivo sul-africano que gravou ao vivo uma trilha sonora para um documentário sobre revoltas estudantis contra a educação colonizadora que era dada aos negros no país. Absolutamente essencial (o disco e as discussões que ele traz).
Paradise Cinema — Paradise Cinema: Jack Wyllie, multi-instrumentista que faz parte do Portico Quartet, gravou um álbum todo com dois percussionistas senegaleses. E mesmo com o foco em percussão, o som mantém o clima etéreo e suave dos registros do Portico Quartet. Muito relaxante.
E aí bora lá
10 do Mês de Outubro de 2020
[esta playlist se divide bem no meio. Você escuta cinco músicas, lê sobre elas, ouve as outras cinco, lê sobre elas, e pronto. Então pode dar o play e até já!]
Jimena Ángel — “Llamameya”, do EP Aire
Eu achei que a Jimena Ángel era alguma pessoa super jovem e nova na área, mas quando eu fui pesquisar descobri que ela já tinha uma história mais longa e interessante. Esta entrevista dá a ela uma carreira de 25 anos na música pop, por exemplo. E esta biografia conta que ela já cantou em festivais como GLastonbury e Roskilde, além de disputar o GRammy Latino com Laura Pausini e Natalia Lafourcade. Mas aparentemente, no ano passado, a cantora colombiana resolveu trocar a capital pela costa caribenha (quem não escolheria né) e ficou vivendo uma vida meio nômade. O EP Aire é a primeira música nova que ela lança desde então, e foi feito por ela com auxílio de diversos produtores, e gravado remotamente na Colômbia, França, Portugal, Alemanha e Holanda.
O som realmente é o que você esperaria de alguém que saiu da cidade e foi morar no Caribe de cara para o mar. As batidas eletrônicas bebem bastante de ritmos latinos, e há também um bem intenso de sons acústicos, especialmente percussões e alguns sopros e metais. Tem também alguns efeitos e sons eletrônicos que lembram um pouco house music, e que eu atribuo (talvez erroneamente) aos produtores franceses. “Tu Pájaro y Yo Pez” é a que mais mostra esse lado, assim como o comecinho da “Está Bien” (que tem uma letra que só alguém morando na praia poderia escrever em 2020). As duas primeiras, por sua vez, tem um toque mais acústico que eu acho mais legal — de fato, destaquei aqui a “Llamameya”, segunda do EP, que tem uma melodia super grudenta, um arranjo super legal com metais e um ritmo divertido.
Luedji Luna — “Recado”, do álbum Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água
A cantora e compositora baiana radicada em São Paulo Luedji Luna lançou em 2017 seu excelente álbum de estreia, chamado Um Corpo no Mundo. O segundo disco dela, chamado Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, saiu agora em outubro e consegue ser ainda melhor que o primeiro. Parece, aliás, uma versão “maior” do primeiro, com arranjos mais cheios, incorporações de mais ritmos e influências diferentes, e uma escala monumental. Tem até um álbum visual dele no YouTube. De acordo com a biografia da artista no Spotify, esse disco novo “versa sobre amor e afetividade de mulheres pretas”, e as letras são outro destaque, como eram no primeiro disco dela. Esta matéria conta que várias faixas trazem trechos escritos por outras autoras negras, como Conceição Evaristo (em “Ain’t Got No”), Cidinha da Silva e Tatiana Nascimento (as duas em “Lençóis”). E neste texto aqui, do Globo, ela também diz que gravou o disco no Quênia enquanto estava grávida do seu filho Dayo.
Outra característica que eu adoro do primeiro disco dela que também dá as caras nesse é a complexidade rítmica. Eu lembro de ficar ouvindo “Eu Sou Uma Árvore Bonita” do disco anterior no repeat tentando contar os tempos dos compassos, e embora não tenha achado nesse disco nada tão complexo assim, ele tem umas ótimas quebradeiras. Essa canção por exemplo, “Recado”, tem um ritmo super quebrado que praticamente te obriga a se mexer. Outra com ritmo super legal é “Origami”, que eu quase coloquei aqui, e que acho que alterna entre 3/4 e 6/8. Eu gosto de reparar nessas coisas, mas além dessa sofisticação toda dos arranjos, a música é envolvente e emocionante por si só. A banda que gravou com ela, aliás, merece tanto reconhecimento quanto a prórpia artista. Ver eles tocando ao vivo é mais um motivo para resistir à chatice enquanto a pandemia não passa.
Mariana Zwarg (Sexteto Universal) — “De Cá Pra Lá”, do álbum Nascentes
Mariana Zwarg toca flauta e saxofone, compõe e faz arranjos. Ela é filha do baixista, compositor e arranjador Itiberê Zwarg (que é um músico incrível que tem um dos nomes mais legais do mundo) e afilhada do Hermeto Pascoal (que é o Hermeto Pascoal). O Sexteto Universal, com quem ela toca nesse disco, é um grupo formado em 2016 por ela e mais cinco músicos de outros quatro países diferentes: França (percussão), Alemanha (piano), Finlândia (percussão também) e Dinamarca (vocais). O baixista é o outro brasileiro do grupo. Segundo essa matéria, ela assina oito das composições; das outras duas que fecham a dezena do disco, uma é do Hermeto, a outra do Itiberê. Mas se você só colocar o disco para ouvir sem ler nada disso, você talvez “só” sinta que está ouvindo música instrumental brasileira de excelente qualidade, apesar dos músicos serem de lugares tão distantes — e, de fato, os títulos são todos em português. É tão interessante ver alguma situação internacional em que o Brasil ainda consegue ditar as regras. Eles já tocaram bastante pela Europa e fizeram uma turnê brasileira em 2018, mas infelizmente ficaram ilhados por causa da pandemia — deve ser legal demais ver show deles.
Eu tenho dificuldade de falar da música com mais precisão do que isso. Você pode esperar algo que seja incrivelmente sofisticado em termos de composição, ritmo e arranjo, mas ao mesmo tempo absolutamente adorável e bonito em termos de melodia. Algumas faixas são mais doces e suaves, como “Acalanto” e “Lucas e Lena” (que cita “boi da cara preta” no meio) e outras mais rápidas e arrebatadoras, como “Bandas e Bandeiras”. Mas “De Cá Pra Lá” foi a minha favorita por conseguir de alguma maneira cobrir todos esses pólos em menos de três minutos,ter uma melodia super grudenta e um ritmo delicioso de baião. as vocalizações sem palavras da cantora dinamarquesa lembram um pouco as vozes do The Sims — nesse caso, uma festa junina no The Sims, mais especificamente. O tipo de música que o Milton Nascimento deveria ouvir para não sair falando que a música brasileira hoje em dia é ruim e, como alguém comentou no bandcamp, o tipo de música que parece capaz de fazer o mundo se recuperar.
Julico — “Todo Santo Dia”, do álbum Ikê Maré
Julico, ou Júlio Andrade, é o guitarrista e cantor do trio sergipano de rock chamado The Baggios. Eu infelizmente não tinha ouvido eles ainda, embora eles tenham se formado em 2004, segundo este texto bem antigo do Monkeybuzz, e tenham seis discos no Spotify. Mas acho que qualquer pessoa que ponha pra tocar o Ikê Maré, primeiro disco solo do cantor, vai ver que se trata do trabalho de alguém que já tem bastante experiência. O álbum mistura a pegada e o fraseado melódico do rock com alguns ritmos e acentos brasileiros de uma maneira que ninguém conseguiria fazer da noite para o dia. O disco tem guitarra, baixo e bateria de rock, mas também tem percussões bem brasileiras e a voz potente do cantor, que canta cada linha com uma energia contagiante e com frequência harmoniza consigo mesmo nas melodias principais de cada faixa. A faixa-título, que abre o disco, é revigorante como também parece ser revigorante a água que o cantor tá jogando na cara na capa do disco.
É um disco que merece muita atenção, e felizmente bastante gente tem escrito sobre ele. A resenha do site Polvo Manco encontrou até uma pasta no Pinterest que o cantor fez com referências para usar no disco. Este texto, do Igor Miranda, conta que o título do disco é uma palavra inventada pelo próprio Julico e “representa o tempo, com seus ensinamentos e ciclos”. Ao mesmo tempo em que o título tem esse caráter mais universal e existencial, as letras das canções me pareceram bem mais ligadas ao aqui e agora. “Nuvens Negras” e “Aonde Viemos Parar” podem ser lidas como comentários sobre a situação do país, assim como “Todo Santo Dia”, que eu destaquei aqui. Junto com a primeira faixa elas compõem uma espécie de suíte de uns 12 minutos que abre o disco muito bem. E a segunda metade do álbum guarda algumas ótimas surpresas, como um solo de guitarra meio Pink Floyd no fim de “Paramopama / Vaza Barris”. Sinto que há uma linha no tempo que liga os Novos Baianos de 1970 a esse lançamento de 2020.
The Twilite Tone — “All’s Fair”, do álbum The Clearing
Às vezes eu tenho a impressão de que para cada artista famoso há uns 10 produtores, músicos e engenheiros responsáveis por essa fama que, no entanto, nunca são reconhecidos. Pela biografia do Spotufy, esse parece ser o caso do produtor Anthony Khan, que já tem no CV trabalhos com gente como Gorillaz, Kanye West, John Legend e My Brightest Diamond. Khan lançou em outubro seu primeiro disco cheio de música autoral, The Clearing, sob o nome The Twilite Tone, e cacete como o disco soa bem. Sim, é música eletrônica, mas a impressão que dá é que Khan deu aquela polida caprichada em cada instrumento, sample e efeito que chegaram até o disco. Como diz neste texto da Stones Throw, o que tem aqui é um pouco de hip-hop instrumental, um pouco de funk eletrônico e um pouco de house music (bem pouco de house, eu achei. E tudo isso, de acordo com o texto, foi produzido apenas com um teclado Korg Triton e uma MPC da Akai.
Nesta matéria do bandcamp, ele comenta que o título do álbum, The Clearing (que pode significar “a clareira” ou “a limpeza”) vem da ideia de tirar o entulho da vida, arejar a casa e voltar ao que importa. E de fato há muito pouco nesse trabalho que dê pra chamar de “entulho” — odisco inteiro flui de maneira contínua, praticamente sem pausas. No começo, eu senti que a música vai meio que tentando encontrar um caminho: as faixas são um pouco mais curtas e pulam de uma ideia para outra num ritmo meio frenético. Na segunda metade, com o som já estabelecido, o artista vai de uma batida pesada para outra praticamente sem parar, sempre empilhando melodias, sons interessantes e samples vocais curiosos em cima das faixas. Eu fiquei dividido entre duas faixas para colocar aqui: “All’s Fair” e “Honorable Mention”. As duas tem batidas dançantes com melodias de sintetizadores em cima e são parecidas até na duração. Mas como uma delas se chama “menção honrosa” na tradução direta, me pareceu errado escolher ela.
[Aqui é a metade da playlist. Agora, pode ouvir as outras e depois leia abaixo sobre elas]:
Zeal and Ardor — “Trust No One”, do EP Wake of a Nation
Foi fuçando os cantos dos blogs pirateadores de metal desindexados do Google que eu achei o primeiro EP do Zeal and Ardor para baixar lá pra 2017, e pirei logo de cara. A banda começou como projeto pessoal do músico Manuel Gagneux, suíço de mãe negra estadunidense, que resolveu misturar black metal com os cantos de chain gang: as músicas que os presos cantavam enquanto quebravam pedra acorrentados nos séculos 18 e 19. Ele brisou então um universo paralelo em que os escravos estadunidenses, buscando alento de seu sofrimento por meio da música, teriam se voltado não a Deus, mas ao capeta. A música com certeza é mais interessante do que essa minha explicação. O primeiro EP, Devil Is Fine, é uma exposição meio estranha de uma ideia genial. Mas o primeiro álbum, Stranger Fruit (de 2018, já com banda completa) deu a essa ideia a execução que ela merecia. Durante a turnê do disco, a banda passou inclusive pelo Brasil, e eu vi eles tocando na choperia do Sesc Pompeia com abertura do Tantão e os Fita, e se teve algum show na minha vida que valeria a pena ter pagado 10 vezes o preço que eu paguei para assistir, foi esse. Olha só:
O EP Wake of a Nation é a primeira coleção de inéditas que eles lançaram desde então (se bem que eles lançaram cada faixa do EP individualmente nos meses anteriores, então elas atualmente não são exatamente inéditas?). O título pode ser traduzido como “despertar de uma nação” ou como “rastro de uma nação”, e segundo essa matéria as faixas foram compostas em resposta ao assassinato de George Floyd nos EUA. A ideia inicial era lançá-las como parte de um álbum programado para 2021, mas Gagneux preferiu soltá-las assim que possível. Eu tenho quase certeza de que essa capa é inspirada em uma obra de arte moderna cujo autor eu não consegui achar de jeito nenhum, mas a obra usa cassetetes negros e forma uma cruz em posição normal. As inversões operadas pela banda para essa capa, no entanto, fazem muito sentido. É bem evidente que o EP todo é inspirado por eventos horríveis e busca um som que reflete isso —será que isso é uma boa ideia? Não sei. Do ponto de vista estético, essa banda continua sendo original, competente e lembrança de um mundo que ainda não se parecia tanto (para mim pelo menos) com um filme de terror meio tosco do John Carpenter.
antihoney — “Noise”, do álbum Secrets
Mais um álbum que eu descobri apenas porque vazou na internet e o site responsável me informou por newsletter, Secrets é um dos dois álbuns disponíveis no Spotify do artista chamado antihoney. Desde que eu comecei a escrever o 10 do Mês, acho que nunca tinha achado algum artista com tão pouca informação disponível. No site oficial, havia links para redes sociais que não tinham muita informação e para um Discord. O Discord é uma tecnologia que está para mim mais ou menos como a retroescavadeira está para um cachorro, mas felizmente eu consegui entrar lá e descobrir que antihoney é o nome artístico de uma moça japonesa. Ela começou a produzir música sob esse nome mais ou menos por volta do ano 2000 e foi até 2007. Ficou num longo hiato entre 2007 e 2019, ano passado percebeu que tinha alguém vendendo suas músicas para distribuidoras sem seu consentimento. Aparentemente, enquanto resolvia isso a inspiração voltou, e ela terminou mais um disco.
Pelo Discord, ela me falou que esse disco inclui também algumas canções que ela começou a compor nos primeiros anos fazendo música. Ela se inspira em gêneros como trip hop, ambient e post rock. “Meus artistas favoritos são MONO, Cocteau Twins etc.”, ela escreveu. Nas primeiras faixas desse álbum dá pra sentir o lado do trip hop. Mas o foco em criar climas densos e sombrios que caracteriza muito trip hop é substituído, nessas faixas, por uma pegada um pouco mais pop e… imprevisível. “Play Doll” é uma faixa meio cabaré, por exemplo. Na segunda metade do álbum é que a influência do post-rock fica mais evidente: a longa “Fools in April” fica bem ruidosa no final. O disco é cheio de surpresas, e com frequência surgem algumas sonoridades bem únicas, mas há uma sensação meio de conto de fadas que se mantém ao longo da obra toda.
[epílogo: depois de usar o Discord eu também descobri esta página do Twitter que tem todas essas informações, e ainda mais. Pelo menos eu aprendi algo novo.]
Good Sad Happy Bad — “Star”, do álbum Shades
Good Sad Happy Bad é uma banda inglesa, mais uma que o meu amigo, o Brunno Felype Simões Costa, me apresentou. Depois li na Pitchfork que na verdade a banda se chamava Micachu and the Shapes (não que eu conhecesse eles sob esse nome). Tentei procurar por que eles mudaram de nome, mas não achei — a minha hipótese é que isso aconteceu porque rolou uma mudança de membros e a tecladista foi pros vocais. A principal compositora do quarteto é a Mica Levi (provavelmente de onde saiu “Micachu”) e ela já fez arranjos de trilha sonora para uns filmes bem famosos, como Sob a Pele (no qual a Scarlett Johansson é um alienígena devorador de homens) e Jackie (sobre a viúva do presidente gringo assassinado em 1963). Mas o som do Good Sad Happy Bad não tem muito a ver com trilhas de filmes: é essencialmente um pop com bastante sonoridade puxada do pós-punk, às vezes mais barulhento, às vezes mais melodioso. É como a banda diz no bandcamp: “as músicas são boas, tristes, felizes ou ruins, ou lentas, rápidas, pesadas ou leves…”.
Essa variedade faz com que o disco de 40 minutos seja cheio de surpresas. A sexta faixa, “This Skin”, mostra uma agressividade bem surpreendente, e tem uns saxofones dissonantes buzinando no fundo. Essa agressividade volta de novo cinco faixas depois, na “Pyro”, que fica bem dissonante e barulhenta lá pela metade, depois desacelera, acelera de novo… você nunca sabe muito bem o que vai acontecer. E aí do nada vem uns momentos bem fofos e bonitos, como a faixa que eu destaquei aqui, “Star”. O arranjo e a produção lembram um pouco o pop independente inglês da virada dos anos 80 para 90, de bandas como The Sundays, e algo na maneira como a Raisa Khan canta me lembra a Dolores O’Riordan do Cranberries. Há bastante coisa retrô no som do grupo, mas há também muito que é inteiramente atual. Ah, e eu demorei muito para perceber, mas a capa do disco mostra um monte de óculos escuros (“shades”) empilhados.
TOBACCO — “Chinese Aquarius” do álbum Hot, Wet & Sassy
Foi em 2010 que eu ouvi pela primeira vez o Dandelion Gum, um dos álbums da banda Black Moth Super Rainbow, e a experiência me motivou a baixar a discografia inteira do grupo e colocar no meu mp3. Eles fazem uma música pop extremamente frita, com muitos sintetizadores, distorção, vozes processadas por vocoders, nomes bizarros e algumas melodias fofinhas por cima. E Thomas Fec, o artista conhecido como TOBACCO, é o cantor e um dos principais compositores daquele grupo.Ele é meio avesso a publicidade, mas nasceu na Pensilvânia, tem uma irmã e tirou seu nome do “Tobacco Man” um personagem de quem ele tinha medo, de um filme chamado Redneck Zombies (“zumbis caipiras”, que parece ser extremamente tosco). Hot, Wet & Sassy é o quinto álbum solo dele, e segundo o bandcamp, é o álbum em que os “impulsos pop” presentes no som dele “burbulharam até o topo”. Nas palavras do artista, o objetivo era “Excrever canções sem rasgá-las no meio”. Isso pode fazer parecer que o som dele em geral é extremamente agressivo ou abrasivo, mas não é o caso. Em todos os discos dele há pelo menos traços de melodia ou batidas divertidas.
Mas também não é como se o som dele fosse um violão e voz com vocais harmonizados. Não tem quase nenhum som nesse álbum que não pareça ter tido um encontro desagradável com um fio desencapado. Na faixa destacada aqui, por exemplo (“Chinese Aquarius”), há um riff tocado pelo que parece ser uma guitarra distorcida ou algum sintetizador analógico que engoliu um liquidificador. E há também um momento mais suave e molódico lá pros 1'40. Várias faixas do álbum aliás tem essa pegada mais suave. É o caso da “Jinmenken”, da “Mythemim” (que tem andamento mais rápido também) e do encerramento com “Perfect Shadow. Mas a voz dele sempre aparece processada de uma maneira meio extrema. E os arranjos das faixas sempre têm uma variedade incrível de sons interessantes.
Sonia Calico — “Mukbang Roller”, do álbum Simulation of an Overloaded World
Já vou pedir desculpas se o começo dessa música te deu aflição (como deu pra mim da primeira vez que eu ouvi). A Sonia Calico é uma produtora de música eletrônica do Taiwan e este é o primeiro álbum cheio dela, depois de uma cacetada de singles e participações em compilações. Logo de cara o que me impressionou no disco foi o amplo vocabulário rítmico que ela tem, que vai desde algumas batidas mais retonas até outras bem mais quebradas — eu arriscaria até dizer que ela deve ouvir uns funks de vez em quando. De toda forma, se a expressão “música eletrônica” te fez pensar em “tunts tunts”, saiba que esse não é o caso aqui. Mas fora esse vocabulário rítmico, é impressionante também a variedade de sons que ela usa. E nesse sentido, acho que o disco não tem exemplo melhor do que o começo dessa faixa (“Mukbang” é o nome dado às transmissões de vídeo ao vivo que mostram uma pessoa comendo, geralmente grandes quantidades de alimento, e muitas vezes de maneira ruidosa para engajar mais sentidos do espectador).
Segundo o bandcamp, as influências dela incluem breakbeat, trap, b-more, footwork, grime, ballroom, dancehall, kuduro e mais. Ela conta também que 80% da música desse disco foi feita depois do lockdown, e que o disco tenta imaginar “um cenário pós-humano, imaginar a próxima forma de vida que pode surgir no mundo”. Nesse sentido, ele me dá a mesma sensação que eu tive, bem jovem, quando vi Blade Runner com o meu pai pela primeira vez e fiquei imaginando que, quando eu fosse adulto, o mundo realmente seria como era no filme. A faixa “Neo Tokyo Funk” é relevante nesse sentido, porque ela mistura algum estilo de música tradicional asiática com uma batida eletrônica. Esse foi mais um disco que eu descobri graças à newsletter do Mundão Sound System. Outra curiosidade: em inglês, “calico cat” é o nome dado aos gatos de pelagem tricolor. E no Instagram da artista, ela tem pelo menos uma foto com um gato desses.
E esse foi o 10 do Mês de Outubro! Obrigado demais, mais uma vez, pela leitura e audição atenciosas. Logo logo mais um mês vira e nós nos encontraremos de novo por aqui.
Como sempre, se quiser avisar de algo que vai sair no mês que vem, ou me dar bronca por não ter incluído algo maravilhoso, o melhor lugar para isso é o Twitter. Aliás, é uma boa você seguir lá também, porque assim você fica sabendo da nova playlist assim que ela sai, e também pega umas indicações de música no meio do mês. Se preferir não, também, não tem problema; a gente se vê no começo de dezembro. Até lá!!
Quer mais? O 10 do Mês de Setembro tá aqui: https://medium.com/@gsumares/10-do-m%C3%AAs-setembro-de-2020-beb8fc6d06c3