10 do Mês — Setembro de 2021

Gustavo Sumares
21 min readOct 2, 2021

Escute aqui: https://open.spotify.com/playlist/15eGGlqHI1HLrxLAseQHF8?si=0728271e96614bb3

Com invejável (e provavelmente irrepetível) pontualidade, apresentamos o 10 do Mês de Setembro de 2021. Você ouvirá no link acima (e lerá sobre, no texto abaixo) 10 faixas lançadas por 10 artistas diferentes no mês 9 (essa piada seria melhor no mês que vem), cujo encerramento dá boas vindas ao trimestre final de 2021.

Eu lembrava que nos anos anteriores de 10 do Mês, setembro era um mês com muitos lançamentos legais e, de fato, 2021 não foi diferente, mesmo com a tragédia indescritível que o mundo viveu de lá pra cá. Não foram só muitas coisas novas, mas também muitas coisas legais e diferentes. Tanta música boa, na verdade, que apesar do volume maior que o comum de artistas para ouvir, montar essa playlist foi até mais fácil que em outros meses.

Para o mês de setembro, decidi que já havia passado da hora romper com um hábito desagradável que desenvolvi aqui: o hábito de impor ao leitor a minha impressão de quais músicas são estranhas, normais, animadas, tristes, etc. Embora eu acredite que um pouco de aviso prévio possa beneficiar alguns ouvintes, sei também que todo mundo é bem adulto e consegue decidir por si mesmo qual é o clima de cada faixa. Claro,ainda vou comentar o que achei de cada uma das faixas nos textos de cada uma. Mas sobre a playlist, acho que basta dizer que busquei representar a maior variedade possível de sons legais que o mês passado proporcionou.

E, como comentei, essa variedade foi enorme. Entre as 10 faixas a seguir, há mais de cinco idiomas diferentes, um dos quais eu acho que nunca tinha ouvido até o começo desse mês. Também estão representados, assim como no mês passado, todos os macrocontinentes do planeta. Mas, curiosamente, a música instrumental tem menos representação nesta playlist que nos meses anteriores. Não foi nenhuma escolha consciente da minha parte. Será que setembro é um mês mais cantante? Ainda preciso avaliar melhor, mas por acaso a lista abaixo parece ter menos música instrumental que a dos meses passados?

Menções honrosas:

De Beren Gieren — Less Is Endless: quarto álbum de estúido do trio belga de jazz De Beren Gieren. Uma música instrumental suave e tranquila, mas com momentos chamativos suficientes pra manter a audição interessante.

Dorotheo — Como Es: um álbum de rock psicodélico cheio de surpresas da dupla mexicana Dorotheo. Destaque para o encerramento “Caballerango” e para a segunda faixa, “Caetanave”, que realmente parece algo que o Caetano Veloso comporia enquanto orbita a Terra num foguete.

Maria Ó —Quantas Vezes a Gente Nasce?: Segundo álbum da cantora, compositora e educadora musical de São José dos Campos, que por muito pouco não entrou na playlist. Oito composições lindas em 28 minutos, com arranjos e produção impecáveis.

Mild High Club — Going Going Gone: Pra mim esse disco tem som de você e sua turma numa festa chique com fonte de champanhe no meio do salão. Música pop com forte influência jazzística e até de MPB e performances excelentes do grupo estadunidense (e de pelo menos uma convidada que fala português). Delicioso de ouvir.

Vitor Araújo — [[ M-I ]] LT’s Post-Studies: Me pegou de surpresa esse EP doidão do Vitor Araújo, que tem pouco a ver com o monumental Levaguiã Tere de 2016 além da criatividade e do compromisso com o inesperado. Uma piração eletrônica muito interessante.

Tudo isso posto, vamo lá pro

10 do Mês de Setembro de 2021

[Pra quem prefere as pausas, vamos de 4–3–3 nessa playlist. Ouça quatro faixas e venha ler sobre elas antes de ouvir as outras]

Face to Face — “Farewell Song”, do álbum No Way out but Through

Essa música foi escolhida para a playlist pelo Robinho do Sendo Fogo — banda cujo disco novo apareceu no 10 do Mês de Agosto de 2021. E com essa recomendação, é a segunda vez em dois meses que ele aparece aqui arrasando. É uma faixa de encerramento, mas quis pegar a energia dela emprestada para começar a playlist. Saca só o que o Robinho falou sobre a banda, o disco e a faixa:

“Face to Face foi a primeira banda que eu ouvi pensando sobre como eu queria ser aqueles caras, trocar uma ideia, sentar pra beber junto, entender um pouco da fórmula das coisas simples que despertam sensações tão criadoras e potentes na gente.

“Em No Way Out but Through aquela banda ainda está lá. O mesmo Face to Face de “Disconnected”, “Blind” e todas aquelas linhas de baixo que deixam a gente revirado musicalmente falando. Quando eu falo sobre a simplicidade de tocar hardcore ou california punk rock ou o nome que você achar melhor, eu não quero diminuir, pelo contrário. É como se aquela gente, a nossa gente, não precisasse ler grandes tratados sobre música, nem estudar ou se colocar como um intelectual do assunto pra fazer alguém chorar de emoção ou se conectar como se a música tivesse sido escrita para você.

“O disco explora o básico para quem já conhece a banda: coros, refrões grandiosos, linhas de baixo marcantes, começando pela energia clássica da banda em “Black Eye Specialist” e “No Way out but Through”, que empresta o nome ao disco, até “You Were Wrong About Me” que traz um tom até de adolescente mal entendido, com vocais cheios de eco, pré-refrão naquele esquema que você já se imagina um discurso bonito num Warped Tour (nunca é demais sonhar).

“Face to Face é uma banda que toca faz uns trinta anos pelo menos. Foi por isso que escolhi esses caras. Quanto tempo você acha que vai durar a sua paixão mais avassaladora? Se for pra vida toda, o que você está fazendo pra manter ela viva? O Face to Face tá lançando mais um disco lindo pra sua história e derrubando qualquer um que diga que isso é só uma fase, uma coisa passageira. E apesar desse pensamento otimista de um fã distante, o disco termina com a frase “I guess this is goodbye” na autorreflexiva “Farewell Song”, que fecha brilhantemente esse disco.”

Amyl and the Sniffers — “Security”, do álbum Comfort to Me

Amyl and the Sniffers é um quarteto de rock australiano, e nenhum de seus membros se chama Amyl na verdade. Esse nome, segundo este texto da BBC, é a palavra que é usada no país para se referir a algo que, se não me falham meus conheciments de inglês e de narcóticos, se chama de “loló” por aqui. “Você cheira, dura 30 segundos e depois você fica com dor de cabeça. Nós somos assim!” declarou em 2019 a cantora do grupo, Amy (quase Amyl) Taylor, num arroubo de sarcasmo auto-dirigido que o grupo está longe de merecer — ainda que a comparação com loló não seja de todo descabida.

O grupo toca rápido e toca forte, isso é verdade. E este segundo disco deles traz 13 músicas em 35 minutos, sendo que a maioria das faixas não chega a três minutos de duração. A dor de cabeça depende, naturalmente, da tolerância do usuário/ ouvinte ao princípio ativo do grupo, que parece ser volume e empolgação, encontrado aqui em estado surpreendentemente puro. Na minha experiência, a dosagem que eles oferecem aqui é adequada para provocar uma sensação de euforia muito benvinda.

Acho que nenhuma das faixas traz algo que não seja guitarra, baixo, bateria e voz. As batidas são simples e rápidas, com viradas que são equivalentes a um carro saindo de uma curva fazendo drift. Os riffs têm aquele misto de simplicidade e criatividade comum em bandas de pegada mais punk (vide as faixa “Freaks to the Front” e “Hertz”), e de fato o som do grupo me lembrou muito a Joan Jett. Claro, a cantora Amy Taylot é bem responsável por essa associação, e acredite: ela se sai muito bem na comparação com a lenda do rock. Desde a primeira faixa ela parece estar ligada no 220, e sua voz e presença parecem ser o grande catalisador da reação inebriante que o grupo promove.

Ouvindo as letras, essa energia toda parece vir de um saudável ódio de classe (“Capital”) ou de uma indignação compreensível diante do machismo que ainda existe (“Knifey”), mas sempre é canalizada de maneira brilhante nas gravações. Mas há também bastante humor presente no disco, como em “Don’t Need a Cunt (Like You to Love Me) e “Security”, minha favorita, cuja letra coloca o ouvinte na desconfortável posição de segurança de um bar na qual a cantora afirma e reafirma não estar bêbada demais para entrar, ao mesmo tempo em que ela talvez esteja flertando com você.

Buffalo Daughter — “Don’t Punk Out”, do álbum We Are the Times

Por algum motivo eu achei que a banda chamada Buffalo Daughter seria um grupo de country ou de indie folk e quase deixei passar. Mas felizmente algo (sei lá o quê) me motivou a ouvir o álbum novo deles, We Are the Times. Logo na abertura “Music” eu percebi que minha percepção inicial estava errada, e conforme fui ouvindo o disco e pesquisei sobre a banda, fui ficando cada vez mais feliz por não ter me entregado a ela.

O Buffalo Daughter na verdade é um trio japonês de “colagistas sonoros”, segundo o Allmusic. São duas moças (SuGar Yoshinaga e Yumiko Ohno) e um cara (Moog Yamamoto), e eles na verdade fazem música desde 1993 juntos. Os primeiros EPs deles saíram em 1994, segundo a Wikipedia, e este é o oitavo disco cheio deles — o primeiro em sete anos. Nada nesse álbum, porém, sugere música que seja de outra época.

O termo “colagistas sonoros” que o Allmusic usou me pareceu bem apropriado, porque a maneira como a banda sobrepõe sons parece mesmo uma colagem. É difícil dizer exatamente quais são os instrumentos que eles usam, mas sempre tem voz, guitarra (seja tocada, seja sampleada), sons eletrônicos e (quase sempre) marcação rítmica. Essa formação significa que eles conseguem mudar do nada a sonoridade de uma faixa quase imediatamente, como acontece na “Global Warming Kills Us All”. Essas mudanças são um dos fatores que me dão uma impressão lúdica sobre as composições, que me remete também ao Cornelius (outro artista sonoro japonês que acho que também começou a trabalhar na década de 90).

E você nunca sabe o que a faixa seguinte vai trazer. Pode ser o riff repetitivo de “Loop” ou quatro minutos de ruído dissonante como em “ET (Densha)”. Mas pode ser também uma divertida faixa dançante no estilo Talking Heads ou David Bowie em Scary Monsters, como é o caso de “Don’t Punk Out”, com bateria acústica. Rola até uma voz masculina meio desencontrada que parece muito algo que o David Byrne cantaria. Essa matéria do Brooklyn Vegan traz a ficha técnica mais completa do disco que eu achei, e revela que além da bateria acústica, essa faixa também tem participação de alguém tocando “computer” (??). E se você ouvir um sotaque brasileiro no disco, é porque o músico brasileiro Ricardo Dias Gomes contribui voz e fala à faixa 7, “Jazz”.

Kondi Band — “How Will It Be for Me in This World?”, do álbum We Famous

A Kondi Band é uma dupla formada pelo músico serra-leonês Sorie Kondi e o produtor estadunidense Chief Boima, que tiveram um encontro fortuito. Kondi já tinha, no momento desse encontro, toda uma longa vida e carreira musical. Nascido cego em Freetown, na Serra Leoa, ele começou em 1977 a tocar uma kalimba modificada (chamada também de Kondi) e a compor suas próprias músicas, segundo o site afropop. Ele só gravaria um álbum, porém, em 1998, e mesmo nesse caso, a guerra civil na cidade fez com que as masters do disco fossem perdidas.

Foi só por volta de 2008 que Kondi conseguiu gravar de novo e subir algumas faixas no YouTube, e foi aí que Boima o encontrou — em particular, pela canção “Without Money, No Family”. Boima, que tem ele próprio ancestrais de Serra Leoa, fez um remix da faixa que circulou bastante, e alguns anos depois recebeu um convite de um produtor para ir até Serra Leoa tocar com Kondi. Isso foi em 2012, e assim nasceu a Kondi Band. O primeiro álbum saiu em 2017 e We Famous, o segundo, saiu agora, contendo gravações feitas ao longo de quatro anos em diversas turnês por locais como Bélgica, Espanha e Ilhas Canárias (é o que diz o bandcamp). Como o título deixa claro. eles ficaram famosos, e a fama é merecida.

O grande trunfo da Kondi Band é que o produtor tem mão leve. Todas as faixas desse segundo álbum são essencialmente Kondi cantando e tocando seu instrumento (que tem o mesmo nome que ele), e Boima acrescenta adereços, batidas e linhas de baixo, mas nunca de maneira muito invasiva. A introdução e “Dont Follow Sweetness” já deixam claro esse método, mas não o esgotam. Ao longo das faixas seguintes, não só Kondi vai se revelando um compositor, cantor e instrumentista de mão cheia, como também Boima vai mostrando um vocabulário cada vez mais amplo. Então “Shake Your Tumba” tem uma batida meio house music, “She Doesn’t Love You” é uma faixa mais pop, e “It’s God’s World (So Don’t Do Bad)” tem um suingue meio funkeado.

Nem para por aí. “Fatou” tem uns synths meio dissonantes, “The Sweetness is Gone” tem um sotaque dub… São 10 faixas em 36 minutos, e as surpresas vão até o fim do disco. A penúltima, “How Will It Be for Me in This World?”, é até meio disco. Mesmo os momentos mais incomuns são bem divertidos de ouvir, e se há um problema com o álbum é o fato de que ele inteiro é empolgante — uma faixa um pouco mais introspectiva no meio talvez ajudasse a manter o ritmo. Mas isso já é pelo em ovo. We Famous por enquanto me pareceu uma das audições mais interessantes do ano.

[Aqui a gente volta pra ouvir mais três faixas antes de vir aqui de novo ler sobre elas]

Luana Flores — “O Que Vem Ver”, do álbum Nordeste Futurista

O EP Nordeste Futurista é o primeiro lançamento de maior fôlego da cantora, rapper e produtora paraibana Luana Flores. E de fato, como o título leva a imaginar, há vários aspectos de cultura nordestina representados aqui. Há bastante influência do hip-hop (e até mesmo uma participação do novíssimo Edgar na última faixa), mas ele é permeado por tantos elementos diferentes que praicamente se transforma em algo novo.

Uma dessas diferenças que me chamou a atenção é o uso intenso de percussões como triângulo, repique e pandeiro nas bases. Não são só batidas de hip-hop com sons diferentes: a base rítmica mesmo é algo diferente, que lembra bem mais baião ou coco — ouça por exemplo a quarta faixa, “Vai Trovejar”. Também as rimas são diferentes, com uma métrica muito mais próximas de um repente ou um embolado do que um flow de rap propriamente. Na terceira faixa, “No Mei dos Mato”, isso fica bem claro.

O rsultado disso é um som que transcende os estilos em que se baseia. Nesta entrevista da Revista Acrobata, ela conta que sua associação com o hip-hop surgiu depois que ela participou de uma residência artística em 2019 com outros rappers. Eu li essa entrevista depois de ter ouvido o EP e senti que essa trajetória fica bem clara no disco. De fato, ele parece o resultado de alguém chegando com várias ideias novas a um gênero musical bem estabelecido.

Todas as faixas creditam um convidado, mas a voz e o estilo de produção de Luana Flores ficam sempre no primeiro plano. Ela tem uma voz e um estilo característicos que transparecem entre os diferentes andamentos, ritmos e timbres com que ela trabalha. Com seis faixas e 16 minutos, é uma estreia curtinha mais promissora. Me pareceu um trabalho mega original, que pega esse título interessante e leva ele muito além dessa capa legal. “O Que Vem Ver” me pareceu a faixa que melhor combina tudo que ele tem de legal a mostrar.

Kaê Guajajara — “Minha Missão”, do Álbum Kwarahy Tazyr

Kaê Guajajara é uma rapper, cantora e escritora nascida em Mirinzal, no Amazonas, mas vivendo na favela da Maré no Rio de Janeiro. Ela já tem outros dois EPs disponíveis no Spotify, datados de a partir de 2020, e Kwarahy Tazyr é seu primeiro álbum cheio. O título do disco, segundo o Zona Suburbana, quer dizer “filha do sol” no idioma zeeg’ete falado pelo povo Guajajara ao qual Kaê pertence.

A ascendência dos povos originários da cantora fica evidente sobretudo nas letras, que falam de maneira bonita sobre espiritualidade e ancestralidade (como “Meu respirar” e “Minha Voz”). Diante do genocídio que os povos originários vem enfrentando desde… bem, desde 1500, é radiante ver quanta positividade e afeto existem nessas composições. “Filha da Terra” é um hino bonito de resistência e auto-amor, e “Amor indígena (original cria)” aborda as dificuldades que os povos originários enfrentam, mas coloca o orgulho em primeiro lugar.

Mas há também faixas que encaram esse genocídio de maneira direta, como o emocionante interlúdio “Ancestralizou” — é a penúltima faixa, mas eu acho que seria ainda mais potente se fechasse o disco. Mas “Meus Olhos”, que vem em seguida, também encerra o trabalho de um jeito bonito. A identidade indígena da rapper também aparece na escolha de idioma: há vários trechos de música cantados no que eu suponho ser zeeg’ete, como em “Home” (que também tem partes em inglês). E, finalmente, aparece de modo mais discreto na produção, que traz alguns samples de flautas e percussões indígenas.

Mas, no geral, o som do álbum é um hip-hop / trap bem produzido e interessante, e eu senti alguma influência de chill hop na produção também. É até mais melódico do que a média, eu senti, e de fato, nesta entrevista excelente, a cantora conta que compõe em cima de melodias com as quais sonha. Kwarahy Tazyr traz uma perspectiva nova e revigorante ao gênero, e foi difícil escolher uma só faixa para representar o disco — com 10 músicas e 31 minutos, ele passa voando como se fosse uma faixa só. No final, “Minha Missão”, uma das primeiras, foi a que me pareceu sintetizar melhor tudo que ele tem de legal.

Alien Weaponry — “Ahi Kā”, do álbum Tangaroa

O Alien Weaponry é um trio de metal da Nova Zelândia formado por três membros descendentes dos maori, povo originário da região. Esse dado não é meramente demográfico: a maioria das faixas do grupo são cantadas em maori, e a banda também diz no bandcamp que usa instrumentos tradicionais chamados de “taonga puoro” em suas faixas, embora eu não tenha conseguido perceber, nesse segundo álbum deles (Tangaroa, ou “deus do mar”) qualquer som específico que me remetesse a esses instrumentos.

A primeira referência que vem à mente é o Arandu Arakuaa, conjunto brasileiro que opera uma fusão semelhante de metal com música de povos originários. Mas a verdade é que o arandu Arakuaa é bem mais aventuroso nessa fusão. O som do Alien Weaponry é bem mais próximo do metal “tradicional” — pensa em Metallica, Anthrax, ou no mais contemporâneo Gojira, e você não tá longe. Uma comparação melhor é com o Sepultura, que também sempre ficou mais pro lado desse metalzão véio de guerra do que para o lado dos experimentos mais interessantes de fusões musicais.

Mesmo assim, o som do grupo é muito original e bem pesado. Os andamentos são lentos, mas são ocupados por riffs matadores e uma bateria que parece ter o tamanho de um prédio. Isso tudo promove aquele suíngue que dá vontade não só de balançar a cabeça mas o tronco inteiro — escute por exemplo “Kai Whatu” ou “Hatupatu” que isso fica mais claro. Várias faixas também trazem os três membros gritando juntos algumas frases das letras, o que as torna ainda mais impactantes.

“Tangaroa”, por sua vez, é a única (se não me engano) que mistura os dois idiomas. Como faixa-título, ela não faz feio: seus riffs e batidas remetem a um tsunami crescendo no horizonte, e de fato, segundo o bandcamp, a letra fala sobre o perigo que a mudança climática representa para o povo. As faixas em inglês (que são minoria) acabaram sendo as que eu achei menos interessantes, embora elas também tenham ideias musicais interessantes. Mas são pouco comparadas a algo como a matadora “Ahi Kā”, a mais curta do disco, que traz tudo de bom que a banda tem em menos de 4 minutos, com o bônus de sua letra (de novo, segundo o bandcamp) ser um protesto anticolonial.

[Só falta mais três, então ouve elas lá depois vem aqui ler pra encerrar]

Monsieur Doumani — “Kalikandjari”, do álbum Pissourin

Da mesma maneira que esquerdista não pode ver uns dados e ouvir uns especialistas que já se convence de algo, eu não posso ver uma banda com formação incomum num idioma que eu não conheço que eu já quero ouvir. Então quando vi o álbum do Monsieur Doumani na newsletter do newlabumreleases.net, com um monte de faixas com títulos estranhos, coloquei pra tocar quase imediatamente. E logo que o suingue de percussão e trombone da abertura “Tiritichtas” começaram, eu já sabia que havia chegado à verdade por um método válido e confiável.

O Monsieur Doumani, segundo o bandcamp, é um trio do Chipre, uma ilha fincada no mar mediterrâneo entre Turquia, Síria, Líbano, Palestina e Egito. Eles começaram adaptando música tradicional do Chipre, mas logo passaram a compor canções inspiradas na “sociedade cipriota contemporânea, bem como nas condições instáveis de nossa era”. São três integrantes: um toca trombone e flauta, outro canta, maneja instrumentos eletrônicos e toca um instrumento tradicional chamado Tzouras (parece um bandolim), e o terceiro é creditado com guitarra, loops e backing vocals. Não consegui descobrir se a formação incomum tem a ver com a música tradicional do Chipre, mas ela gera uma sonoridade bem diferente do que eu estou acostumado a ouvir. Segundo o site oficial, já é o quarto álbum do grupo, e embora seja o primeiro a não trazer um dos seus membros fundadores (Angelos Ionas), ainda é o som de um conjunto maduro, confiante e plenamente inspirado.

O trio com frequência usa escalas musicais diferentes das escalas maior/menor que sempre pintam no ocidente, o que chama atenção meio imediatamente. Salvo engano, eles usam bastante escala octatônica, que é algo que a gente normalmente associa a “música egípcia” — ouças as faixas “Thamata” ou “Poulia” por exemplo, que você percebe. “Nychtopapparos” também tem um ritmo quebrado que também me remete a música turca. Ao mesmo tempo, nao é um som totalmente estranho a nós: o suingue de “Alavrostishiotis” tem algo de funk ou rock, e a faixa-título tem um encerramento embasbacante que parece um trombone e um cajón tocando metal.

Só esses elementos já fariam da audição algo suficientemente interessante, mas o uso que o trio faz das vozes também é muito legal. Resumidamente, tem voz pra caramba aqui. Seja cantando, fazendo backing vocal, colocando adereços ou até fazendo barulhos rítmicos, cada faixa tem sua própria relação com vozes. “Thamata” traz até o que parece ser uma cantora convidada (embora não creditada). “Kalikandjari” já começa com essas vozes nesse idioma curioso, e um dos motivos que eu escolhi ela foi a surpresa que isso causa. O bandcamp conta ainda que o idioma que o grupo usa é o dialeto cipriota, outra língua que não chegou ao Google Tradutor. Mas o site oficial da banda oferece traduções para o inglês das letras, por onde dá pra entender que o disco se chama “Escuridão da Noite” e essa faixa se chama algo como “duendes”.

Meridian Brothers — “La Secta”, do álbum Paz En La Tierra

Quero deixar claro mais uma vez, se ainda não estava, que quem tem amigo tem tudo. Outra indicação do Brunno Felype Simões Costa desse mês (além dos discos do Vitor Araújo e do Mild High Club) foi o álbum novo do Meridian Brothers, o décimo deles a entrar no Spotify. O projeto — mais um do Eblis Álvarez, gênio colombiano que também contribui ao Frente Cumbiero e ao Los Pirañas — é uma espécie de investigação científica maluca sobre a cumbia, semelhante ao que o Tom Zé faz com os ritmos brasileiros. Ou seja: ele toca cumbia, mas ao mesmo tempo vira do avesso e faz maravilhas com ela. Nesta entrevista excelente, ele fala mais sobre seu método.

Mas ouvir esse álbum também é uma maneira de captar esse método. Você vai ouvir bastante percussão, sanfona, ritmos dançantes e diferentes e estilos vocais estranhos —as vozinhas agudas que aparecem em “Mi Primo El Boxeador” e “Pensando En Mi Morena” sempre me divertem. São divertidas também as letras, que falam por exemplo sobre como o amor de uma morena pode superar as piores crises do mundo (“Pensando En Mi Morena”), sobre como o imperialismo provavelmente marcará a colonização de outros planetas (“La Conquista de Otros Planetas”) e, como identificou o Afropop, uma seita dedicada ao cantor Diomedes Diaz (“La Secta”).

Toda essa brincadeira tem uma medida igual de profissionalismo e competência por trás. As letras, por exemplo, são via de regra rigidamente metrificadas e rimadas, as composições usam alguns recursos musicais bem sofisticados (tipo as mudanças súbitas de tom em “Pensando En Mi Morena” e as modulações rítmicas de “Paz En La Tierra” e “ La Tocata De Iván El Terrible”). Não precisa acreditar na minha palavra: o próprio álbum tem uma faixa chamada “El Profesionalismo Es Importante” cuja letra destaca as importantes contribuições dos membros do disco, e de vários amigos e músicos que a banda também admira.

Só ler as letras, aliás, é bem legal. E a banda montou uma página com todas elas, incluindo um desenho caricato para cada uma. O resultado é um trabalho que funciona em várias camadas. Se você só quiser deixar ele tocando pra ficar dançandinho enquanto lava a louça, vai ser legal. E se quiser ouvir com atenção as letras e as composições, também vai ter bastante coisa para mastigar. É um daqueles discos cuja pura ambição e competência seriam suficientes para convencer de sua qualidade, se a música em si não a deixasse evidente.

Tagore — “Molenguita”, do álbum Maya

Maya é o quarto álbum do cantor e compositor pernambucano Tagore Suassuna. Embora tenha sido lançado só agora em setembro de 2021 (era para sair em 2020, mas acabou adiado, como tantas outras coisas, por causa da pandemia), este texto da Folha de Pernambuco conta que ele na verdade começou a ser composto em 2017, quando o músico estava em São Paulo e era membro da banda chamada Bike.

De fato ele soa como o disco de alguém que já lançou outros três. A produção é super afiada e a música propriamente traz uma diversidade surpreendente de influências. Se por um lado “Areias de Jeri” parece algo que poderia ter saído de um disco do Alceu Valença, há também muito de rock e de dream pop no som. A faixa-título, que também é a primeira, abre o álbum com uma batida reverberante, sintetizadores, baixo proeminente na mixagem e alvumas camadas de vocais harmonizados no refrão. O andamento lentinho e a densidade do arranjo remetem a grupos mais lisergicos como o Tame Impala e o The Church.

Esses mesmos elementos se repetem em outras faixas, como “Tatu”, “Colombina” e “Drama” — esta última, aliás, com participação do Dinho Almeida, dos Boogarins, que é uma associação que faz bastante sentido. Fora ele, a produção do Pupillo Oliveira (ex-Nação Zumbi) também deixa sua marca no disco. Algumas outras faixas, como “Capricorniana”, aumentam um pouco o andamento e pendem para um lado mais rock psicodélico. Segundo cita a Folha de Pernambuco, esse álbum para o cantor “é um disco sobre saudade, sobre a falta que uma pessoa pode fazer”, e as letras tematizam isso de um jeito ora bonito, ora interessante.

No caso de “Molenguita”, que eu escolhi, “interessante” é mais adequado. De início eu achei a letra meio estranha (fora a minha, eu não me interesso muito pela vida sexual de ninguém). Mas eu precisei admitir que a repetição intensa de uma informação pessoal, junto com a redundância de sentido entre “transa” e “foda” e a riminha meio óbvia, acabou virando algo grudento. O ritmo suingado da música e os timbres diferentões de guitarra e bateria também ajudam. Ela pode não ser a mais representativa do disco (talvez algo como “Tatu” ou “Maya” fizesse melhor esse trabalho), mas encaixou bem na playlist desse mês.

E esse foi o 10 do Mês de Setembro de 2021! Como sempre, obrigado pela audição e leitura atenciosas. Quando eu faço essa playlist é com um deseje no coração, e no momento em que você está lendo esta frase esse desejo se realiza.

Vale lembrar: apoie sempre os artistas que você curte, da maneira como puder. Seja comprando disco, seja comprando merch, seja curtindo, comentando e compartilhando as coisas deles. Ninguém faz nada se acha que tá sozinho no mundo.

E por falar em colaboração, se você quiser dar um toque de músicas que saíram (ou vão sair) e eu deixei (ou posso deixar) passar, o melhor jeito de fazer isso é pelo Twitter. Se quiser sugerir algo, reclamar de algo ou só conversar sobre música, segue a gente lá.

Se não, mês que vem a gente se encontra por aqui de novo. Outubro foi outro mês daora nos anos passados, e neste ano deve ser igual. Até lá, ainda é importante lembrar: máscara, ambientes ventilados (e vazios, tanto quanto possível), vacina, álcool em gel e consciência de classe. Logo mais surgem outras dez faixas aqui pragente curtir juntos.

Quer mais? O 10 do Mês de Agosto tá aqui, e o 10 do Mês de Julho tá aqui. Ou clique aqui e veja todos que já saíram.

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Gustavo Sumares

Jornalista, roteirista, editor, revisor. Falo aqui sobre música, especialmente por meio do 10 do Mês!