10 do Mês — Agosto de 2022

Gustavo Sumares
18 min readSep 14, 2022

Escute aqui: https://open.spotify.com/playlist/7KrPA70p40LdOO8ZKO0r34?si=ab40179f83c94813

Quase já na metade de setembro, mas ainda assim com muito orgulho, apresentamos o 10 do Mês de Agosto de 2022. A seguir, você descobre 10 sons lançados no mês do desgosto que contribuíram para que ele passasse rapidinho.

Meus esforços pra adiantar essa playlist foram frustrados por excesso de trabalho. E precisa ser citado na introdução desse texto o (suposto) falecimento da newsletter do NewAlbumReleases.net. O site de pirataria mandava todo dia uma lista extensa dos discos postados lá, muitos dos quais eram disponibilizados por artistas querendo dar publicidade aos seus lançamentos.

E eram artistas do mundo todo — muitos dos lançamentos de países menos usuais que eu destaquei aqui em outros meses vieram dessa newsletter. Eu até mandei um email pra eles perguntando se tinha rolado algo, mas (como eu esperava) ninguém respondeu. Em todo o caso, o site pelo menos ainda existe, e tem uma categoria chamada “Misc.” que é maravilhosa. Eu ainda olho lá, mas o processo é mais lento.

Mesmo com esse infeliz sumiço, eu felizmente consegui encontrar por outras fontes (como conversas com amigos, a newsletter do allmusic.com e o próprio Bandcamp) lançamentos legais do mundo todo esse mês. Coisas da Nigéria, Hong Kong, Colômbia e bem mais. Olha só:

Menções honrosas

Astrophysics — Selected and Tragic: lançamento intenso do produtor carioca de música eletrônica. Batidas rápidas, arranjos enormes, bem impactante. Vale a pena sacar.

Cássio Oli — Bloco Marcial: A estreia do cantor e compositor pernambucano de Igarassu que se formou musicalmente em bandas militares, e que mostra aqui uma voz original e vibrante.

Hirsch Effekt — Solitaer: Esse trio de metal técnico e intenso da Alemanha é um dos grupos que sempre me surpreende com seus lançamentos, e esse EP de 4 faixas, por mais curto que seja, é tão bom quanto de costume.

Stella Donnelly — Flood: O disco de estreia da Stella Donnelly, Beware of the Dogs, foi um dos meus favoritos de 2019. Flood, seu sucessor, é mais tristonho e não me impressionou tanto, mas ainda assim é bem legal.

Szun Waves — Earth Patterns: disco relaxante de música instrumental suave com membros do Portico Quartet, que eu adoro. Ótimo pra relaxar.

e finalmente

10 do Mês de Agosto de 2022

[essa playlist ficou dividida na metade. Então, se quiser, ouça as primeiras cinco faixas e depois venha ler sobre elas pra fazer uma pausa]

Boris — “Ruins”, do álbum Heavy Rocks [2022]

Você talvez se lembre do Boris, porque o trio de rock japonês esteve aqui faz pouco tempo: em janeiro de 2022, o 10 do Mês destacou uma faixa do álbum anterior deles, W. Eu não achava que eles fossem lançar outro disco em 2022, e quando eu vi eles falando nas redes de um disco chamado Heavy Rocks, nem me toquei, porque tem outro disco deles com esse nome, lançado lá em 2002. Achei que tinham relançado pra marcar os 20 anos, sei lá. Só depois que eu descobri que, além daquele Heavy Rocks que eu ouvi pra caramba no fim da adolescência, tem outro Heavy Rocks que foi lançado em 2011 com a capa ligeiramente diferente e, desde agosto de 2022, tem outro ainda (também com capa parecida). E assim como os outros dois discos com esse nome — e diferentemente do suave e reflexivo W — aqui o Boris mostra seu lado mais direto e poucas ideias, com resultados pesadíssimos.

O título da abertura “She is burning” já dá o tom. A música começa com distorção, gritaria e uma batida rápida meio punk, e todos os membros da banda tocam como se estivessem de fato em chamas. Esse estilo cacetada, com distorção podrona, guitaria e bateria estilo punk, e refrões grudentos, se repete também em faixas como “My name is blank” e “Ruins”, essa última uma voadora de dois minutos e meio que condensa bem o que o disco tem pra oferecer. “Blah Blah Blah” é uma das faixas que coloca um saxofone dissonante tocando ao lado do grupo, somando mais um timbre intenso à mixagem. E “Question 1” parece que vai seguir a mesma fórmula, mas lá pela metade ela se enfia num pântano de distorção e vira algo bem diferente (mas igualmente ruidoso).

Um dos grandes destaques do Boris sempre é a guitarrista Wata, e os timbres que ela evoca nesse disco não deixam nada devendo aos 30 anos de história do grupo. Nos solos, a guitarra parece um laser de corte; nos riffs, cresce e fica do tamanho de um megazord formado por amplificadores. A banda também é conhecida pelos drones incrivemente intensos de guitarra, e “Nosferatu” dá um gostinho disso, abrindo com um baixo estouradasso que dá pra sentir nas tripas. “Ghostly imagination” é outra surpresa, graças à sua batida eletrônica, e “(not) Last Song”, apesar do nome, fecha o disco de maneira surpreendente. É uma faixa suave, guiada por um piano mixado muito alto ao lado de uma performance vocal impressionante e intensa que eu suspeito ser do baterista Atsuo. E o jeito que ela termina… não vou dar spoiler, mas vale ouvir. Assim como o resto do disco todo. E depois, só por curiosidade, você pode voltar e ouvir o W.

FINGERGAP — “Would You Like to Dance With Me”, do álbum Shan Shan 160

Foi por pouco que o FINGERGAP já não entrou no 10 do Mês. Em fevereiro, ele foi destaque numa compilação de música eletrônica chinesa que comemorava o ano novo chinês, e por mais que fosse uma compilação curta, me impressionou o suficiente pra entrar nas menções honrosas. Shan Shan 160 é o primeiro álbum cheio desse produtor de Hong Kong a aparecer no Spotify (acho de fato que seja o primeiro que ele lança) e tem uma qualidde absolutamente desproporcional ao número relativamente baixo de lançamentos do artista.

A Mixmag Asia diz que o nome desse disco é uma referência ao seu ritmo. “160” é o BPM normalmente usado nos estilos footwork e juke, que o artista produz, ao passo que “Shan Shan” em cantonês e quer dizer algo como “cambalear” ou “atrasar”. É, segundo o site, uma frase comum na cidade, usada aqui “pelo artista para expressar sua frustração de ter nascido numa cidade onde baladas tristes e lentas nunca param de tocar”. Ouvindo a música rápida e alegre que preenche esse trabalho curtinho, me ocorreu que não haveria maneira melhor de superar essa frustração.

Tirando breves pausas entre as músicas, é tudo dançante e cheio de melodias grudentas (mesmo que, assim como eu, você não saiba cantonês). “下雨的瞬間 (Raining Moment) vem logo após uma breve introdução apresentando os principais elementos sonoros: andamento rápido, batidas sofisticadas que parecem um drum’n’bass mais pirado, sintetizadores com sons de sinos ou que lembram sons de videogame, e a voz sempre processada do cantor Fedor Yury, de ascendência coreana e cazaque. “徘徊黑夜中 (Wandering in the Dark)” e “Would You Like To Dance with Me?” fazem maravilhas com essa receita — a última ainda tem uma guitarrinha processada moh legal, e uma combinação de produção e harmonia que me lembra bastante algumas coisas lançadas no Brasil na década de 80 — tem uma sibidinha no refrão que é igualzinha à do refrão de “Lilás” do Djavan — mas muito mais rápido, cheio de efeitos, e em cantonês.

Todas as faixas são legais: eu adoro o sintetizador borbulhante que fica pipocando durante “稍出了點錯 (Some Mistakes)” e o jeito que “
不想習慣 (Unwanted Habit)” começa direto com uma voz meio descontextualizada — mas é difícil escolher outra que não seja essa. E olha que eu quase fui na última faixa também! Algo que eu não gosto de fazer pra não dar spoiler. Segundo o bandcamp, “未必可以懂 (May Not Understand)” representa “o nascer do sol após a meia noite”, e deve “trazer calor sereno como o sol nascente”.

Não sei se é exatamente como eu descreveria, mas eu fiquei plasmo, perplecto e esratecido quando esse disco terminou. Já ouvi coisas melhores, mais experimentais, mais divertidas, mais bem produzidas (não tantas assim), etc, mas acho que nunca ouvi um disco tão eficiente: dos 25 minutos e 32 segundos dele, eu não saberia cortar nada. Não teve um segundo sequer que eu pensei “tá enrolando”. E todas as faixas são legais, sem exceção. Aí o meu trabalho fica ao mesmo tempo muito difícil (impossível escolher uma só) e muito fácil (qualquer uma vai dar bom).

Ana Cacimba — “Kianda Sereia”, do álbum Azeviche

Azeviche é o álbum de estreia de Ana Cacimba, cantora natural de Diadema que vem lançando singles desde 2018 e cujo trabalho mais longo até agosto desse ano era o EP Cura, de 2021. Esse primeiro disco dela é de material totalmente novo — mesmo “Plural II” é uma versão tão diferente do single “Plural” que é praticamente uma canção nova. E de fato, o lançamento todo tem a originalidade, variedade e qualidade do trabalho de uma artista que já está há bastante tempo refinando seu som.

A artista, de origem quilombola (segundo essa matéria bem legal que fala sobre cada faixa do disco), compõe numa série de ritmos negros e afro-latinos que se conversam muito bem ao longo das 9 faixas e 35 minutos do lançamento. “Kianda Sereia” tem uma célula rítmica que lembra o funk (além de uma linha matadora de baixo), e a seguinte, “Intuição”, já vai para um lado mais hip-hop, com rimas do rapper WinniT e umas percussões pesadíssimas. Logo depois, “Plural II” traz uma levada meio de salsa, com uma letra bonita. Esse trecho excelente de três faixas no meio do disco dá um exemplo do vocabulário musical imenso do qual a artista se vale para criar suas canções, e que ajuda a dar ao álbum um ritmo excelente, interessante de cabo a rabo.

Outras faixas que eu curti muito foram a fiertida “Procissão” e a memorável abertura “Omí Purifica”, composta por Gaby D’oyá e com participação da Anelis Assumpção. A letra (ainda segundo essa matéria) é “um oriki de Oxum” que “fala sobre o poder das água”, mas a melodia, repetitiva quase como um mantra, foi o que grudou na minha cabeça, graças também à produção e ao arranjo primoroso, que mistura sons orgânicos e eletrônicos e pontua essa frase com notas suaves de sintetizadores e piano. O disco todo é excelente (a balada “Turmalina Negra” e a suave “Santa Bárbara” também merecem destaque), e deixa claro que a cantora merece muito mais projeção do que já tem.

Kokoroko — “We Give Thanks”, do álbum Could We Be More

Lá em 2019, o Kokoroko causou sensação mundial com o seu primeiro lançamento, um EP auto-intitulado. Na real, o primeiro single deles, lançado antes desse trabalho sair, fez com que eles viessem tocar até em São Paulo no fim de 2018, como lembra o Oganpazan. Eis que finalmente em 2022 eles lançaram um disco de estreia, e esse tempo todo que o octeto radicado em Londres fez a gente esperar valeu a pena.

Could We Be More é um disco delicioso de música instrumental. Como o bandcamp aponta, a banda segue na tradição dos gigantes do continente africando, incluindo Fela Kuti e Ebo Taylor, e faz justiça a essa linhagem. As faixas geralmente são movidas por linhas de baixo melífluas, acompanhadas não só de batidas suingadíssimas de Ayo Salawu e percussões excelentes de Onome Edgeworth. Por cima dessa cozinha de peso vem as linhas melódicas da metaleira de trompete, sax e trombone. Os andamentos são moderados a lentos, mas há tanta movimentação na percussão que as faixas sempre soam bem agitadas. Algumas, como “We Give Thanks” e “War Dance”, até puxam o andamento mais pro rápido, mas são exceções. A banda também improvisa graciosamente, mas na real o groove que eles constroem é um som no qual não seria nada mal morar a vida inteira.

Pode parecer estranho, mas são 15 faixas e 48 minutos com essa base. Sim, há variações, como os vocais em “Something’s Going On” e “Those Good Times”, a guitarra maravilhosa de “Soul Searching”, e quatro interlúdios curtinhos. A banda também trabalha muito bem as dinâmicas, alternando entre momentos mais suaves (tipo “Age of Ascent”) e mais altos, o que ajuda no ritmo do disco. Mas ouça por exemplo a levada arrasadora de “Ewà Inú” (“beleza interior” em yoruba): por acaso falta alguma coisa? Falta não, ainda mais considerando a produção impecável do disco que faz cada som soar com clareza e brilho. Um dos álbuns mais bonitos desse ano até agora.

Matsuhei & Arubu Avua — “Asahi Ferry”, do EP Faina

O EP Faina é o segundo lançamento do produtor e artista visual Leonardo Matsuhei disponível no Spotify. Eu conheci ele primeiro pelos trabalhos de artes visuais, e só depois eu ouvi (e curti) Gion, seu álbum de estreia de 2020, um lançamento de 7 faixas e 31 minutos, muito original e tranquilo, que mostra uma música eletrônica suave mas cheia de timbres instigantes — quase ambient, mas mais movimentado e efusivo. Uma referência relevante é o Soshi Takeda, que apareceu no 10 do Mês de Janeiro de 2022, se bem que Takeda tem uma pegada meio retrô que não aparece aqui.

Apesar da escala menor (4 faixas em 17 minutos), Faina, realizado em parceria com o projeto Arubu Avua do brasileiro Victor Negri (cujo trabalho também é bem interessante) me pareceu um aprofundamento desse estilo. Como diz o texto no bandcamp, esse disco tematiza a água de diversas maneiras, mais evidentemente em títulos como “Asahi Ferry” (referente a uma balsa) e “Foc Sobre Les Aigües” (“fogo sobre as águas” em catalão). Mas ela também aparece nos graves submersos de algumas faixas, nas percussões agudinhas de “Douro Sui” e nas formas fluidas e mutáveis das quatro composições.

A imagem mental que esse disco me proporcionou foi a de flutuar por um rio, com os ouvidos debaixo d’água, até chegar no mar. De vez em quando surgem uns barulhos que parecem ser de criaturas ameaçadoras (o encerramento “Jardim Meio Hectare” me transmitiu uma sensação levemente tensa), mas no geral é um contato pacífico com um mundo sonoro próximo, mas diferente. E há sempre uma sensação de contato humano, que vêm à superfície em “Asahi Ferry”. Ela traz um violão distante e uma voz pesadamente processada, que me surpreenderam positivamente justamente por trazerem sons orgânicos num trabalho em que eu não os esperava. Mesmo curtinho, Faina é um mergulho profundo em sons envolventes.

[Se quiser fazer uma pausa, esse é o momento. Depois tem mais cinco faixas para ouvir e ler sobre!]

Sol Patches — “XIR”, do álbum Ordinary Circles

Sol Patches é uma artista multidisciplinar de Chicago que já lançou três álbuns desde 2016, e Ordinary Circles é seu quarto lançamento. No bandcamp, ele é acompanhado por um texto bonito que dá a entender que esse disco foi feito em reação à perda de uma pessoa querida próxima (ou como homenagem a essa pessoa). De fato, há bastante tristeza nesse disco. Mas ela se mistura a tantas outras sensações (incluindo muitas coisas positivas), e é processada sonoramente de tantas maneiras diferentes, que o resultado final vai bem além da tristeza. E se torna então uma homenagem ainda mais bonita.

O som do disco é bem eletrônico e processado. Em alguns momentos, como “XIR”, é bem dançante, embora não de um jeito tão animado assim. Essa faixa consege misturar uma batida animada com uma performance vocal reflexiva e um monte de sintetizadores brilhantes de modo muito impactante — ela evoca um monte de emoções ao mesmo tempo, e me pareceu uma excelente representante do álbum. É um tipo de música introspectiva, urbana e noturna, com andamentos normalmente mais lentos, sons eletrônicos estranhos, gravações de vozes estilo áudio do zap e, às vezes (como em “Moonset” e “Mapping Worlds”), algumas rimas. Rola uma mistura com R’n’B que, junto ao clima melancólico do disco, me lembrou o trabalho do Autre Ne Veut. Algumas faixas, como “Young Catch a Fade”, levam essa influência para um lado bem aveludado e sensual, no qual as batidas e vozes ficam em foco.

Ao mesmo tempo, há outras faixas no disco com uma pegada bem esquisita de música eletrônica experimental, na qual os timbres doidões ficam em primeiro plano. É o caso de “Strawberry Blood Streams” e do encerramento “Across The End”. Essas mudanças garantem que o disco siga interessante até o final. E é um disco longuinho: 12 faixas em 44 minutos. Mas essa duração rende bem. Alguns destaques, como a já citada “Young Catch a Fade” e “Bullet Don’t Got No Eye”, só aparecem lá no final. E quando o disco acaba, com o encerramento “Across The End”, a sensação é de ter feito uma travessia intensa por águas profundas.

Conjunto Primitivo — “Bailano Primitivo”, do álbum Morir y Renacer

Ouvindo Morir y Renacer, o disco de estreia da dupla Conjunto Primitivo, eu imaginei que eles eram colombianos, porto-riquenhos, argentinos ou algo assim. No final das contas, Ana Belén García-Higgins e Cesar Robles Santacruz são moradores da cidade de Chicago, nos Estados Unidos. Onde eles nasceram exatamente eu não sei, mas a mistura de reggaeton com música eletrônica sombria que eles servem nos 28 minutos dessa estreia realmente parece algo que só poderia ter nascido de um exílio no cerne do império.

O disco inteiro (títulos e letras) é em espanhol. As faixas são encabeçadas pela voz possante de Ana Belén, que parece estar numa espécie de transe místico. Apesar de ser o foco das faixas, a voz dela fica meio baixa na mixagem, como que envolta numa névoa formada pelos sons eletrônicos e percussões mecânicas que seu companheiro de dupla conjura. As letras também falam de temas intensos: paixão arrebatadora, submundo, sombras, esquecimento, o que dá outra camada de esotérico ao som. Ao mesmo tempo, é tudo bem dançante: saque por exemplo a batida retona de “Submundo” ou o reggaeton industrial de “Tafetán”. “Yermo”, mais para o final, é uma breve pausa mais melódica e melancólica, que a sombria “Vagando” logo suplanta com mais sintetizdores ominosos e batidas enormes.

Eu senti que a dupla chegou, por vias muito diferentes, à mesma invocação do sobrenatural que o conjunto holandês The Devil’s Blood. Com oito faixas em menos de meia hora, o disco não tem tempo de expandir sua ideia musical central. Mas tem tempo de destrinchá-la bastante, e o álbum que resulta disso é uma brisa obscura e envolvente de oito faixas parecidas e afiadíssimas.

Meridian Brothers — “Hipnosis”, do álbum Meridian Brothers & El Grupo Renacimiento

Ora ora ora, se não é mais um lançamento do genial Eblis Álvarez à frente dos Meridian Brothers. O músico colombiano, grosso modo, é uma espécie de Tom Zé da música latina, compondo toda uma série de experimentos em tornos dos ritmos tradicionais da Colômbia. Meridian Brothers & El Grupo Renacimiento, seu último lançamento, é uma colaboração com um septeto ficcional que supostamente teria gravado canções antológicas de salsa na década de 70 antes de cair “NA DROGA e no esquecimento” (capslock da própria banda no bandcamp). A banda até “registrou” o “encontro” com um “documentário” disponível no YouTube (é uma animação bem divertida). Embora seja evidentemente uma brincadeira, o fato de que o grupo regressa após se envolver com uma igreja torna a história tristemente crível.

História à parte, a música é o que dá pra esperar do Eblis Álvarez a essa altura: salsa, cumbia e ritmos latinos dançantes executados com maestria, muitas percussões, letras absurdas e detalhes sonoros muito ilustrativos. Meu favorito desses aparece em “Triste son”, cujo refrão é um muxoxo sofrido difícil de descrever mas muito engraçado e triste ao mesmo tempo. Linhas deliciosamente dissonantes de guitarra também pontuam faixas como “Descarga profética” e a abertura “La Policía”, deixando claro que esse não é um disco de salsa qualquer. Como não podia deixar de ser, há uma sátira afiada do imperialismo, da polícia e do papel opressivo da tecnologia no mundo de hoje. Pode ser impressão minha, mas acho que “Hipnosis” tem até uma citação da marcha imperial do Star Wars no meio. Coloquei ela na playlist, depois me diga se você também ouviu. Fora isso, é uma faixa rapidinha de salsa que fala de viagem telepática e renascimento pela música.

Tem uns pedaços mais tradicionais de salsa no meio (“La mujer sin corazón”, a última, que segundo o New York Times é um cover), mas são raridade. A regra é “Poema del salsero resentido”, cuja letra critica a suposta “pureza” da salsa tradicional. É toda uma visão sobre música que parece ter o objetivo central de ser divertido, e que me pareceu ter muito sucesso.

Josyara — “Ouro&Lama”, do álbum ÀdeusdarÁ

Como demorou pra sair esse segundo disco da Josyara! Claro, eu não culpo ela, nem acho que ela deveria ter lançado antes, nada disso: o artista tem que produzir no ritmo que for melhor para ele; a gente que escuta pode no máximo dar palpite. Mas é que Mansa Fúria, o álbum de estreia dela de 2018, não só consagrou ela como uma compositora e cantora de destaque, além de uma das melhores violonistas que a gente tem hoje, mas foi também um dos discos nacionais que eu mais curti da última década. Foram 4 anos de lá pra, e não foram quaisquer quatro anos — esse entrediscos praticamente coincide com o governo fascista que saqueou o Brasil no meio da pandemia. Mas pra mim, ouvir ÀdeusdarÁ compensa esse tempo todo.

Comparando com o anterior, me pareceu um disco mais produzido. Tem mais sons eletrônicos, além de gravações mais detalhadas, que tiram foco um pouco da voz e violão da cantora. Mas a voz e o violão seguem sendo a medula das composições: é fácil imaginar faixas como “MAMA” e “Ouro&Lama” sendo versões expandidas de algo que nasceu nas seis cordas. Sim, elas ainda têm voz e violão, mas tem também harmonizações, sopros e percussões lhes que dão um aspecto bem mais cinematográfico. Outras faixas, como “CLARÃO” e a abertura “ladoAlado”, aproveitam essa produção renovada para atingir uma escala bem maior do que as faixas de Mansa Fúria. Mesmo a relativamente simples “Berr0” vira quase um tango sensual graças aos arranjos mais cheios.

Em essência, porém, esse disco traz a mesma genialidade de composição que a Josyara já tinha mostrado no disco anterior. E também o mesmo engajamento político e o mesmo erotismo sáfico (vide “Melancia”). Basicamente tudo que você poderia esperar da sequência de um álbum sensacional. Um lançamento que consolida a cantora e violonista como uma das maiores instituições da vertente mais tradiocional da música popular brasileira contemporânea.

Emeka Ogboh — “Verbal Drift”, do álbum 6​°​30​’​33​.​372​”​N 3​°​22​’​0​.​66​”​E

Como seria transformar uma cidade em música? Eu sinto que o Emeka Ogboh, artista sonoro nigeriano, está sempre tentando responder a essa pergunta. No ano passado ele lançou, no dia do meu aniversário, Beyond the Yellow Haze, um álbum de música eletrônica feito em cima de gravações da cidade de Lagos, na Nigéria. Foi um dos destaques do 10 do Mês daquele janeiro e também um dos meus discos favoritos daquele ano. Até por esses motivos eu me permito a roubadinha de incluir nessa playlist uma faixa de seu segundo álbum, 6​°​30​’​33​.​372​”​N 3​°​22​’​0​.​66​”​E, lançado na última sexta-feira de julho.

A proposta de transformar a cidade em música continua nesse trabalho, mas com foco ainda mais afiado. As coordenadas que dão título ao álbum apontam para a estação de ônibus de Ojuelegba, em Lagos, uma espécie de Terminal Bandeira ou Central do Brasil, mas maior, mais caótica e ainda mais colorida, pelo que eu li. Segundo o bandcamp, o local, antes de ser um terminal de transporte público, era um santuário de Exú, e Ogboh criou o disco com base em sons do lugar, além de entrevistas com os motoristas de ônibus que trabalham e passam sempre por lá.

Num exercício curioso (e não-intencional) de metalinguagem, eu própri ouvi esse disco majoritariamente no transporte público, e não tenho palavras para descrever a adequação da música para esse tipo de audição. As faixas, em geral, são compostas por batidas eletrônicas que vão se adensando ou alterando lentamente durante períodos relativamente largos de tempo — são 8 faixas em 45 minutos, afinal. “Wole”, a primeira após a introdução, tem um clima tenso e meio inóspito, como um entroncamento de trânsito desconhecido — o nome, ainda segundo o bandcamp, quer dizer “entrada”. “Verbal Drift” começa com uma batida mais simples, mas que vai ficando mais intricada conforme se envolve com mais vozes e sons da estação, reforçando a sensação de se misturar numa multidão. As vzes, ainda de acordo com o bandcamp, são de um motorista que descreve a vizinhança do terminal.

“Ayilara” (sobre o distrito da luz vermelha) e “No Counterfeit” (uma declaração de um motorista sobre a singularidade daquele espaço) foram outras favoritas minhas — a segunda delas em especial tem uma batida muito legal, que vai dialogando de maneiras muito interessantes com os sons gravados. “Oju 2.0”, a última antes do encerramento, é a mais longa e esquisita: basicamente 10 minutos de gravações ambientes do lugar misturadas uma em cima das outras. É uma espécie de despedida dessa imersão musical num lugar diferente. Era um jeito muito bom de viajar em 2021, no meio da pandemia, e em 2022 segue sendo bem legal.

E esse foi o 10 do Mês de Agosto 2022! Não vou falar que o próximo vai chegar logo porque nos últimos 2 meses isso foi mentira. Mesmo assim, até lá lembre-se de apoiar os artistas que curte da maneira como puder, seja comprando o disco, seja comentando no post, etc.

A gente só vai se ver de novo depois do primeiro turno das eleições, e acho que todo mundo que chegou até aqui sabe o que pode fazer pra ajudar a mandar a cadela do fascismo de volta pro canil. Lembre-se sempre de levar a colinha, título, identidade, álcool gel e consciência de classe. Tenho esperança de que nosso próximo encontro será mais esperançoso.

Quer mais? O 10 do Mês de Julho tá aqui e o de Junho tá aqui. Ou veja todos aqui.

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Gustavo Sumares

Jornalista, roteirista, editor, revisor. Falo aqui sobre música, especialmente por meio do 10 do Mês!