10 do Mês — Julho de 2020

Gustavo Sumares
17 min readAug 8, 2020

Escute aqui: https://open.spotify.com/playlist/2BLLRZBWIO3ZyUTB1g8UEh?si=dmEe1lcnROeTV2LafDzAdA

Está no ar o 10 do Mês de Julho! Sim, já se passaram 8 dias de agosto, mas acontece que sexta-feira passada foi 31 de julho e saiu um monte de coisa nova, então eu preferi dar aquela ouvidona em tudo para garantir que não ia deixar nada de muito legal passar. Trabalho fadado ao fracasso, mas não menos gostoso por isso.

Em julho, estando há mais de 4 meses sem saber o que é ir num bar beber uma cerveja, pude notar que meu ânimo estava notadamente afetado. Isso em geral se reflete na minha capacidade de me envolver emocionalmente com música e, ao longo do mês, não teve nada que me pegou pelo pescoço e gritou “EU SOU INCRÍVEL”. Mas aí quando eu fui montar a playlist, notei que tinha tanta coisa boa que eu mal conseguia escolher só 10.

No final eu dei um jeito. E me chamou a atenção o fato de que muito da música boa lançada em julho (tentando, claro, ficar só naquilo que pode ter passado sob o radar de muita gente) era brasileira. Estonteantes 50% dessa edição são bandas brasileiras, uma concentração geográfica que me preocuparia se não fossem duas coisas: 1) sendo brasileiro, eu sou suspeito mesmo e 2) os álbuns e artistas destacados aqui são, de fato, ótimos.

De qualquer maneira, um dos meus objetivos com essas playlists é fazer com que elas sejam sempre um pouco diferente das anteriores. Isso é um sinal de que estamos ouvindo coisas diferentes, o que, por sua vez, sugere que estamos fazendo o possível para ampliar nossos horizontes musicais. E olhando agora para a playlist, ela me parece de fato diferente das anteriores… o que indica que algo de correto eu devo ter feito. Mas também, olha quanta coisa tinha para ouvir:

Menções honrorsas

Figures — Operating in Unsafe Mode: rock pesadão da Austrália. Esse é o primeiro disco do quarteto de Melbourne que tem uma baixista excelente. “Someone Uninvited” e “Underpaid Machinery” são duas pedradas maravilhosas.

Future Fate — The Shadowlands: Synthwave instrumental não é novo faz tempo, e esse álbum do produtor australiano que atende por esse nome não inova grandes coisas. Mas a sétima faixa, “Reckoning”, é uma paulada que não pode passar batida.

Greg Foat — Symphonie Pacifique: a música do pianista inglês Greg Foat não tem exatamente a espontaneidade do jazz — parece bem mais composta e arranjada. Mas em termos de sonoridade, ela entrega 100%. Esse álbum é uma tranquila brisa instrumental no oceano Pacífico.

Gulch — Impenetrable Cerebral Fortress: Um arregaço rápido e barulhento da banda de hardcore / gritaria estadunidense — 15 minutos de loucura, 12 dos quais se distribuem entre as sete primeiras músicas, com o excelente encerramento “Sin in My Heart” ocupando os três restantes. Demolidora mesmo.

Rumahoy — Cowboys of the Sea: esse disco quase entrou na lista, mas ficou de fora porque ele é, na verdade, uma piada, ainda que magnificamente bem feita. É tipo grupos do Facebook como “grupo onde fingimos ser idosos confusos com tecnologia”, mas no caso é “quarteto argentino de metal escandinavo que finge ser um grupo de piratas que só pensam em tesouro e bebida”. E sim, a música é ótima e mega grudenta. Vale uma audição.

Então bora lá:

10 do Mês de Julho de 2020

[dê play, ouça três músicas, e depois volte aqui pra ler sobre elas]:

Negro Leo — “Dança Erradassa”, do álbum Desejo de Lacrar;

Enquanto eu lia sobre esse disco, fiquei com saturação semântica do verbo lacrar — aquela sensação estranha de quando você pensa muito numa palavra e ela para de fazer sentido. Segundo o próprio Negro Leo, cantor, guitarrista e compositor natural do Maranhão e atualmente radicado em São Paulo (é o que diz o Uai, pelo menos), a palavra se tornou meio que inevitável conforme, de 2013 para cá, o lacre se tornou uma forma de fazer política. Eu acho a ideia interessante mas vou confessar que não me aprofundei muito nas letras do disco: a música, em si, me pareceu legal o suficiente. Assim como os anteriores dele, tem um pouco de tudo e você nunca sabe o que vai aparecer. “Tudo Foi Feito Pra Gente Lacrar” por exemplo, é um voz e violão tranquilo; “Absolutíssimo Lacrador” já é uma experimentação eletrônica doidona. E a “Dança Erradassa” (acho esse título moh legal) parece algo que poderia ter saído de um disco antigo do Premeditando o Breque ou do Arrigo Barnabé.

Tem uma matéria do Estadão que conta um pouco a história dessa música, e outras histórias interessantes relacionadas ao disco (essa aqui, clica nela e assim que o texto carregar, fica martelando a tecla Esc pra não bater no paywall). Lá diz que ele improvisou a música no violão antes de embarcar pra China, pra uma viagem com a esposa dele, a Ava Rocha (não sabia que eles eram casados), para uma residência artística. Esqueceu da música, depois lembrou e fez a letra inspirada num disco do compositor estadunidense Peter Ivers. Outro ponto importante que a matéria cita é que a pessoa na foto da capa é um amigo do Negro Leo, vestido com roupas militares no meio de uma mata, podendo representar “um militar ou um guerrilheiro”. Digo que isso é importante não só porque é interessante saber a ideia por trás da capa mas também porque eu acho que teve gente que achou que era ele na foto — essa matéria do Papelpop por exemplo usou a capa do disco na chamada e me deu essa impressão. Ele, no caso, é esse aqui.

Kamaal Williams — “Save Me”, do álbum Wu Hen;

Descobri o Kamaal Williams ouvindo o disco Black Focus, de 2016, de um projeto de que ele faz parte chamado Yussef Kamaal. Eu achava que Yussef Kamaal era o nome de uma pessoa que tocava no disco, mas na verdade são duas: o tecladista Kamaal Williams e o baterista Yussef Dayes. Os dois são ingleses e, sendo bem sincero, parte do que me fez curtir tanto o Black Focus foi a bateria do Dayes. Na real, se o disco fosse só as partes de bateria, eu já ia ter ouvido pra caramba. Mas pouco depois de lançar o disco, os dois se separaram num incidente que nunca ficou claro. O Dayes hoje tá tocando com o Tom Misch, um cantor inglês muito popular (não que eu conheça), e o Kamaal Williams lançou em julho esse álbum chamado Wu Hen. Também nessa época eu li algo sobre o Kamaal Williams que tirou uma dúvida que eu tinha desde a primeira vez que li sobre ele: como esse mano inglês branco foi se chamar Kamaal? Mas aqui conta que ele é filho de mãe taiwanesa e pai britânico, e que ele se converteu ao islamismo em 2010 e adotou esse nome.

Enfim, eu fui ouvir o disco novo dele só de curiosidade porque não achei que fosse ser bom mesmo, mas era. Muito bom. A pegada é bem aquele jazz contemporâneo suave mas lindamente tocado de bandas como Alpha Mist. E esse disco até tem umas faixas com vocais, todas as quais são muito boas. A maior parte, contudo, é instrumental, e com uma musicalidade incrível a todos os momentos. As partes mais tranquilas e melódicas das músicas ajudam a deixar ainda mais empolgantes as partes em que a chapa esquenta, como o meio da “Pigale” e o fim dessa que eu escolhi. É aquele tipo de disco que você deixa rolando enquanto faz outra coisa e, quando vê, tá batucando, mexendo os pés, dançando na cadeira, etc. Ah, e Wu Hen, a palavra formada pelos dois ideogramas que aparecem na capa do disco, é o apelido que a avó de Williams lhe deu quando ele era criança. Infelizmente, eu não consegui achar um tradutor que partisse do alfabeto romano e chegasse ao significado desses ideogramas em taiwanês, então se alguém quiser ajudar eu agradeço.

Apollo Brown e Che Noir — “Live by the Code”, do álbum As God Intended;

Normalmente quando eu gosto de um disco, sempre tem aquela música que eu já sei que vem pra essa lista. Ou então eu fico entre duas ou três. As God Intended, álbum fruto da colaboração entre o produtor veterano da cena de Detroit, Apollo Brown, com a rapper novaiorquina mais jovem Che Noir, não foi assim. O disco, uma verdadeira pedrada de rap old school, tem 50 minutos de duração entre 14 faixas, e nenhuma delas é ruim. Sim, algumas são melhores do que outras, mas são pelo menos uns 5 destaques entre os quais eu fiquei muito tempo para escolher um só.

O álbum é uma colaboração entre produtor e rapper, e os dois arrasam. O uso que Brown faz de samples é simplesmente estonteante, as batidas dele são boas demais; às vezes ele coloca pedaços inteiros de outras músicas no meio dos beats e tudo casa perfeitamente. Mais jovem, Noir não fica para trás. Suas letras falam sobre as dificuldades de crescer num bairro pobre muito além da simples privação material. Em “Daddy’s Girl”, por exemplo, ela fala sobre como a ausência dos pais impacta a vida das jovens que cresceram com ela. Em “Hustle Don’t Give”, fala sobre como a pobreza no começo da vida faz com que as pessoas desenvolvam uma relação problemática com dinheiro. E me surpreendeu bastante a faixa “12 Hours” na qual ela se revela uma excelente narradora, à altura do Daveed Diggs do .clipping (cujas letras narrativas eu adoro).

Além dessas tem também a maravilhosa “Freedom”, que fala sobre racismo estrutural e encarceiramento em massa nos Estados Unidos, e a ótima “Blood is Thicker”, sobre violência armada e drogas. Mas “Live by the Code” tem algo que falta um pouco nas demais: um gancho melódico memorável. Aliás, se o disco tem um defeito, é esse: as palavras são inesquecíveis; as melodias, nem tanto. Do refrão dessa faixa, porém, eu suspeito que você não vá se esquecer tão cedo.

[ouça mais três e logo a gente se fala de novo]:

Salvage — “Lasso”, do EP Desvio;

O Slavage é um quarteto instrumental do Rio de Janeiro que, segundo a própria página do bandcamp, fazem uma mistura de math-rock, post-rock e música afro-brasileira. Desvio é o segundo EP que eles lançam, sendo que o primeiro é de 2014. Se eu não me engano, conheci eles por meio do grupo da Sinewave no Facebook — uma das pouquíssimas coisas naquela rede social que ainda não foi completamente engolida por fake news e ódio. Toda sexta-feira rola lá um post colaborativo de lançamentos da semana, e de vez em quando tem um pessoal que posta lá o lançamento dos seus próprios projetos e bandas. Eu adoro isso, porque é surpreendente a quantidade de música incrível que é feita basicamente no nosso quarteirão e às vezes a gente não vê. Mas enfim, alguém do quarteto postou lá que o grupo tinha lançado esse EP, eu fui ouvir e fique feliz de ter encontrado.

A descrição da banda de misturar math-rock, post-rock e música afro-brasileira é bem precisa. Mais do que isso, a banda realmente parece estar bem no centro do triângulo formado por esses três estilos que eles citam, e é um lugar bem original. O post-rock, no caso, mais para o lado Tortoise do que para o lado Godspeed You! Black Emperor — ou seja, nada muito longo, barulhento e intenso. E o Math-rock também mais para aritmética do que para cálculo diferencial — ou seja, nada particularmente complexo. O som do grupo me lembrou o Hurtmold, mas numa escala menor — tem menos gente na banda, afinal. Me parece, de toda maneira, algo que eu ouviria num show no SESC se ainda existissem shows e se o SESC estivesse aberto. Espero do fundo do coração que eles lancem um disco cheio em breve, porque senti que as quatro faixas de cerca de 4 minutos do EP não foram suficientes para esgotar o que eles têm a dizer.

Roseane Santos — “Pastel na Praça”, do álbum Fronteiriça;

Essa música me deu gatilhos: faz cinco meses que eu mal sei o que é ver outra pessoa na minha frente, quanto menos ir na feira. Mas isso é mérito da letra bonita e do arranjo divertido que a curitibana Roseane Santos arrumou para essa música. Dá quase pra sentir aquele calor do sol por trás das lonas das barracas, o cheiro meio estranho de peixe misturado com caldo de cana, etc. É a terceira faixa de Fronteiriça primeiro disco que ela grava após quase duas décadas de carreira musical, segundo a benfeitoria — graças à qual, aliás, o álbum foi finalizado. Antes disso, ela já tinha se apresentado com gente do calibre de Dona Ivone Lara, Lia de Itamaracá e até o Kiko Dinucci que apareceu por aqui alguns meses atrás.

Numa entrevista para a Noise, ela diz que nunca se imaginou compondo, e eu fico de cara com uma coisa dessas. Essa estreia é cheia de faixas lindas — além dessa que tá na playlist e eu acho que já deixei claro que curti, tem também a maravilhosa “Lábia” e “A Sereia e a Fiandeira”, que é de chorar. Em geral as faixas têm mais de quatro minutos e a excelente “Ancestralidade” tem mais de seis, e eu acho legal que elas nunca parecem excessivamente longas: as ideias são bem distribuídas pela sua duração, como a maionese pelo pão num bom sanduíche (pensar em pastel me deixou com fome). Se esse disco levou 18 anos de carreira para sair, ao menos ele atesta ser de alguém com muita experiência musical. Só espero que o próximo não leve outros 18.

Bérberes — “Invasões”, do EP Justinberberes

Essa é meio marmelada porque a Luiza Fernandes, uma das pessoas que compõem a banda chamada Bérberes, fez jornalismo na ECA junto comigo. Deve fazer uns 3 ou 4 anos desde a primeira vez que eu vi eles tocando juntos — no começo eles se chamavam Justin Biebers, que era meio um nome de brincadeira que foi ficando — e eu ainda lembro da primeira vez que eu ouvi a “Superlua” (cujo nome eu não sabia e que talvez, naquela época, talvez nem tivesse esse nome). Foi numa casa de shows que era, literalmente, uma casa residencial onde se faziam shows, mas tinha um bar no porão, e lembro que antes do show tava tocando uma playlist legal que tinha o Tinariwen. O show aconteceu onde seria a garagem, mas toda decorada, com pufes no chão e luzes bonitas, e foi um momento muito gostoso.

Várias coisas a seguir eu estou tirando da memória e, por isso, podem ser imprecisas. Em outro show deles que eu vi, lembro deles contando que se conheceram num curso de violão contemporâneo do SESC. Começaram fazendo um arranjo de alguma música do Satie e viram que aquilo dava caldo. As músicas que formam esse EP foram gravadas ao longo de 2019 e já tinham sido lançadas como singles durante os primeiros meses de 2020. [fim das memórias]. O som deles tem bastante coisa de música brasileira: a viola é um instrumento que aparece bastante. Mas eu sempre fico impressionado com quantas referências diferentes surgem no meio: o começo dessa faixa, por exemplo, me lembra um pouco do contraponto guitarrístico do King Crimson no disco Discipline. E essa colagem sonora meio doida no final também não é algo que eu esperaria ouvir, mas fico muito feliz que apareça. E por mais que a “Superlua” seja ainda a minha favorita ao vivo, acho que a “Invasões” ficou melhor na gravação.

[agora ouça mais duas e depois venha ler sobre elas]:

Ventura Profana — “EU NÃO VOU MORRER”, do EP Traquejos Pentecostais para Matar o Senhor;

Ventura Profana é uma compositora de música eletrônica e, mais do que isso, uma evangelista travesti. A música, a letra e os nomes escolhidos para esse disco e para as faixas já contam uma história por si só. Ela usa formas comuns às pregações religiosas na construção de suas composições, mas em termos sonoros, o disco remete a new wave, house e ballroom. Nas letras, referências a passagens bíblicas e construções verbais associadas à teologia se misturam com vocabulário do pajubá e temáticas LGBTQIA+. O resultado é algo completamente original e intrigante.

Agora, indo além do álbum, essa matéria do Correio 24 horas conta que Ventura Profana é natural da Bahia e cresceu a 80 quilômetros de Salvador. A igreja lhe proporcionou os primeiros contatos com manifestações artísticas. Pareceria ingrato então que ela fizesse um trabalho “para matar o senhor”, mas o “senhor” no caso não é Jesus, mas sim o “macho branco engravatado” que manda e desmanda na sociedade. O trabalho textual de trazer o léxico e as formas das pregações pentecostais e colocá-los numa perspectiva travesti já é muito legal, mas o que é ainda melhor é o fato de que a música faz o mesmo percurso. Não me considero uma pessoa de fé, mas achei nesse EP uma criatividade profundamente inspiradora. Ah, e a artista também faz algumas colagens maravilhosas e posta no Instagram.

Llynks — “Doesn’t Matter Anyway”, do álbum Become the Root

Descobri a Llynks junto com a minha namorada, que na verdade não só encontrou a Llynks comigo como descobriu toda uma nova maneira de encontrar música nova e legal: procurando pela hashtag #newalbum no Instagram. Talvez seja óbvio para gente mais nova, mas eu nunca tinha pensado nisso. Foi fazendo isso que eu cheguei até Become the Root, o álbum de estreia da cantora e compositora texana Sara Kendall compondo sob esse nome. É um disco de pop eletrônico meio obscuro — me lembrou um pouco a Zola Jesus e, num nível mais distante, Bat For Lashes e Grimes. Se eu entendi direito essa matéria, o disco foi um passo adiante na carreira dela: antes ela compunha sob o próprio nome enquanto trabalhava como “caterer” (acho que isso significa algo como cozinheira e garçonete). Para fazer esse álbum, ela se mudou para Austin, no Texas (onde o aluguel é mais barato) e conseguiu focar mais na gravação das músicas.

Ela conta na matéria que trabalhou todas as terças e quintas das nove às cinco da tarde, por quatro meses, para levar o disco de uma versão piano-voz aos arranjos bem mais cheios que ele tem. De acordo com ela, algumas das influências por trás do disco são a trilha sonora do Vangelos para o filme Blade Runner, SOPHIE, Charli XCX e a trilha sonora do jogo Spyro the Dragon. Dessas, eu senti mais o aspecto Blade Runner da coisa, e as estranhices eletrônicas da SOPHIE, se bem que numa escala um pouco menor. O disco também tem um foco na voz dela, que é bem bonita, e em geral ele é bem introspectivo e atmosférico, com andamentos médios. Mas foi justamente a faixa mais animada a que mais me pegou — eu senti que ela traz uma injeção de energia muito boa ao álbum.

[só mais duas agora; ouve lá, depois vem cá]:

Jet Jaguar — “Tormenta”, do álbum Endless Nights;

Algo que sempre me parece impressionante é que qualquer cidade da América Latina, por menor e mais isolada do resto do mundo que seja, tem das duas uma: 1) uma banda de heavy metal autoral, ou 2) uma banda cover de Iron maiden / Metallica / Skid Row e afins. O estilo parece ter um apelo quase sobrenatural ao jovem latino (eu próprio tive a fase metaleiro do mal lá por volta de 2005), e na cidade de Cancún no México, esse apelo deu origem ao Jet Jaguar, banda que se encaixa na primeira categoria das listadas acima. Há sem dúvida uma notável energia “Massacration” no disco, e eu digo isso no melhor sentido possível: eles curtem bastante as bandas em que baseiam seu som e não tem medo nem por um segundo de parecer ridículo cantar agudo demais, por exemplo. A capa meio que já diz tudo nesse sentido. Endless Nights é o primeiro álbum deles, e a história da sua concepção é contada com surpreendente nível de detalhe e carinho na página da Wikipedia da banda.

Ele começou a ser feito em 2017, na Cidade do México, mas foi completado em 2019 em Cancún. A mixagem e a masterização foram feitas na Suécia pelo Henrik Udd, que mexeu nos discos de bandas como Hammerfall e At The Gates. “Cabe mencionar que o nome Endless Nights é inspirado nas longas noites que a banda investiu no estúdio de gravação, além das diversas viagens que realizaram”, diz a página. Achei interessante que a banda canta tanto em inglês quanto em espanhol — as músicas em espanhol foram as que eu mais curti, porque a língua dá outra perspectiva a esse som já tão consolidado que eles tocam. “Tormenta”, de fato, foi a minha favorita. E você pode até não curtir o som, mas acho que a música deixa evidente que a paixão do grupo e a dedicação deles ao estilo são autênticas.

Mansur — “Temple”, do EP Temple;

Como muitas outras coisas que você já ouviu por aqui, o Mansur apareceu pra mim na newsletter de discos vazados do newalbumreleases.net. Por mais que ela seja insensivelmente longa, eu adoro ela porque tem de tudo por lá. Mesmo assim, o som desse grupo me surpreendeu — nem sei descrever o que é isso. Me limitarei a dizer que parece algo que você ouviria se entrasse num templo de bruxas. O grupo é idealizado pelo holandês Jason Kohnen, um cara que já esteve por trás de outros grupos similarmente estranhos. Falo aqui do Kilimanjaro Darkjazz Ensemble e do Mount Fuji Doomjazz Corporation, bandas cujo som poderia ser descrito como “músicas para ouvir de noite olhando pela janela para a rua mal-iluminada enquanto fuma um cigarro”. Você não imaginaria que uma pessoa dessas teria perfil no LinkedIn, mas eis que. Mas voltado ao assunto, esse projeto é formado por ele, mais um cara chamado Dimitry El-Demerdashi (um músico russo que toca, entre outras coisas, alaúde) e pela vocalista húngara Martina Horváth (que tem uma homônima brasileira a quem eu quase mandei mensagem errado num momento de empolgação excessiva). A página do bandcamp do grupo também credita uma pessoa de nome Gadjo Dilo Vendigo (?) por tocar Duduk (??) no álbum, mas ele não é citado como membro da banda.

De fato, instrumentos incomuns são uma marca importante do som desse EP de estreia do grupo. A sonoridade é estranha, mas nunca parece algo criado por meios eletrônicos. Isso me atraiu bastante: gera um clima de desconhecimento e mistério mas, ao mesmo tempo, um calor humano. As faixas tem duração de uns 5 minutos, tempo suficiente para entoarem seus feitiços relaxantes e darem lugar à seguinte. O volume nunca fica muito alto, e há uma sensação harmoniosa que perpassa todo o EP, mesmo quando os sons ficam particularmente estranhos. Sempre gosto de ouvir música que não se parece com o que eu já curto, ainda que o processo de “entender” aquilo seja às vezes um pouco desconfortável. Mas no caso do Mansur, a sensação foi de ter encontrado algo estranho e acolhedor ao mesmo tempo. Não sei, o que você acha?

E esse foi o 10 do Mês de Junlo de 2020! Se você chegou até aqui, agradeço demais a atenção e a leitura / audição atenciosa! O tempo tá voando, logo agosto acaba e tem mais um desses pra você ler e ouvir.

Se enquanto isso você quiser me falar de algo que eu deixei passar, avisar de algo que vai sair ou só bater papo mesmo, manda mensagem lá no Twitter, ou aqui pelo Medium. Seguimos juntos. Beijos e abraços!

Quer mais? O 10 do Mês de Junho tá aqui!

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Gustavo Sumares

Jornalista, roteirista, editor, revisor. Falo aqui sobre música, especialmente por meio do 10 do Mês!