10 do Mês — Junho de 2020

Gustavo Sumares
16 min readJul 4, 2020

Escute aqui: https://open.spotify.com/playlist/0CnjNK4HOkfzgcMu2iffXq?si=OWyClXfcQL-_zvqo_Onx4A

Orgulhosamente apresentamos o 10 do Mês de Junho, com o qual encerramos a primeira metade do ano e completamos já três meses (e uns quebrados) em isolamento social, sem a menor perspectiva de redução no número de mortes. Pelo menos o mundo tem nos brindado com uma cacetada de música boa — muito além dos também excelentes álbuns da Jessie Ware e de Arca.

Me chamou bastante a atenção em junho, aliás, o fato de que os meus discos favoritos do mês vieram de locais bem subrepresentados na mídia musical. Das dez faixas a seguir só três estão em inglês, pra você ter uma ideia.

Isso se deve, em parte, a um esforço consciente da minha parte de buscar artistas além dos EUA, Canadá, Reino Unido, etc. Esforço que, admito, nem sempre dá super certo — às vezes chega no fim do mês e eu percebo que não ouvir artistas de tantos lugares diferentes quanto gostaria.

Mas eu fico imaginando se os sites e blogs maiores também não se aproveitaram da seca que a pandemia provocou nos canais tradicionais de música pop para virar os olhos para outras regiões? Espero que sim, e que isso não seja uma tendência passageira.

Em todo caso, espero que você não imagine que a diversidade de línguas indique que há música “estranha” pela frente. Pelo contrário: eu diria que essa acabou sendo uma das playlists mais divertidas e facilmente abordáveis que eu já montei. O que, por sua vez, não indica que não haja bastante coisa em que valha a pena afundar os dentes com gosto a seguir:

Menções honrosas:

Cadu Tenório — Monument For Nothing: Eu adoro o trabalho do artista sonoro carioca Cadu Tenório, e o seu disco mais recente, Monument For Nothing, me parece uma espécie de cumulação de tudo que ele já fez até hoje. Muito estranho, muito longo, muito legal.

Covet — technicolor: trio de rock, liderado pela excelente guitarrista Yvette Young, que bebe das fontes do post-rock e do dream pop, mas sempre com uma pegada instrumental bem firme. Esse é o terceiro álbum deles, e a terceira faixa, “parachute”, por muito pouco não entrou na playlist desse mês.

Drakeo the Ruler — Thank You For Using the GTL: Um disco de rap gravado na cadeia pelo rapper Drakeo the Ruler que está há 2 anos encarcerado nos EUA sem julgamento. Gravado, aliás, pela GTL: a linha telefônica operada por uma empresa privada que monopoliza esse mercado nos EUA, cobrando taxas extorsivas para que as famílias possam falar com os presos por uma linha de péssima qualidade (pela qual a gente ouve a voz do rapper). Um protesto antológico contra o sistema prisional industrial estadunidense.

Sault — Untitled (Black Is): Um coletivo que lançou dois álbuns em 2019 e esse em 2020, e cujos membros conseguiram até agora manter sua identidade em sigilo. Devido a isso, não sei a quem tenho que agradecer por essa maravilha que mistura hip-hop, soul, R’n’B e vários outros estilos. Mas agradeço mesmo assim.

Zenobia — Halak Halak: “Witch House palestino” ou “dark dabke” poderiam ser algumas maneiras de descrever a música eletrônica desse grupo hipnótica e envolvente desse grupo. Halak Halak é o primeiro álbum deles e a expressão significa “bem-vindo, bem-vindo”.

E agora, sem mais delongas,

10 do Mês de Junho de 2020

[Ah, uma coisa: normalmente eu divido o programa em blocos para orientar a audição/leitura, em geral também porque as faixas não fluem tão bem uma pra outra em alguns pontos. Dessa vez, milagrosamente, senti que o flow da playlist como um todo ficou muito bom. Portanto, sinta-se à vontade para pausar quando (e se) quiser. Mas pra quem sente que os blocos ajudam a ouvir, deixei algumas separações ao longo do texto. Ao chegar numa delas, veja onde está a próxima, ouça até lá, depois leia entre as duas e repita até o fim]:

Bab L’Bluz — Gnawa Beat, do álbum Nayda!

Mais uma indicação do Brunno Felype Simões Costa, amigo querido e meu poeta favorito (entre os vivos pelo menos). Bab L’Bluz é um quarteto marroquino criado em 2018, e esse disco — Nayda! — . Segundo sua página do bandcamp, o objetivo era “promover o Guembri na cena internacional da música contemporânea”. O Guembri, segundo eles, é a guitarra dos Gnawa. E “gnawa” (ou, segundo a Wikipédia, “guinaua”, “ghanawi” e outras variações) são um grupo étnico do magrebe cuja música mistura tradições africanas pré-islâmicas com sufismo islâmico. A página sobre eles é muito interessante, mas esse disco é mais ainda. Demorou várias audições inteiras para perceber que, apesar de soar à altura de qualquer pop ocidental, ele não tem quase nenhum instrumento que a gente tá acostumado a ouvir: me vêm à mente só a voz e a caixa e o bumbo da bateria.

A voz, no caso, da incrível Yousra Mansour, que não só canta muito bem como tem uma presença muito marcante: repara só como ela entra nessa faixa. Sobre as letras, só sei dizer (também graças ao bandcamp) que elas são no dialeto árabe-marroquinho chamado darija. Mas o Guembri, de fato, é o instrumento que mais aparece nos arranjos. Imagino que sejam dois, um dos quais toca uma linha mais grave pra servir como baixo. O outro, por sua vez, compõe linhas melódicas e de acompanhamento à voz que realmente fazem lembrar o que um guitarrista poderia fazer numa banda de rock. E é de uma (ótima) banda de rock a energia que o grupo mantém ao longo do disco todo. Mesmo que o volume nunca fique muito alto e o som nunca seja nada abrasivo, há uma empolgação nas performances que supera isso tudo.

Groupe RTD — “Raga Kaan Ka’Eegtow (You Are The One I Love”, do álbum The Dancing Devils of Djibouti

Como o nome do álbum indica, o Groupe RTD é um conjunto do Djibouti, país do chamado “Chrifre Asiático”, fincado entre Somália, Eritreia e Etiópia (também o único país cujo nome começa com D além da Dinamarca). Esse talez seja o primeiro disco que eu ouço que vem de lá (e ouvi graças à indicação do site O Volume Morto do GG Alburquerque), mas se toda música que sai de lá for boa assim, espero muito que não seja o último. Se você já tem alguma referência musical do chifre asiático (afrobeat, Mulatu Astatke, etc.) é bem provável que você encontre ela aqui. Mas você também vai encontrar um grupo de nove pessoas com vozes incríveis, linhas de saxofone sensacionais, batidas envolventes e uma guitarrinha deliciosa. Ah, e eles foram também um dos destaques de “álbum do dia” do Bandcamp, então isso também deve ajudar a dar a eles um pouco de (merecidíssima) visibilidade.

Segundo o site World Music Central (que eu na verdade só conheci quando estava pesquisando sobre essa banda), a música no Djibouti ainda é controlada pelo estado (embora eu não tenha a menor ideia de como o estado seja capaz de fazer isso). E, por isso, o Groupe RTD toca em cerimônias oficiais durante o dia. Essas cerimônias devem ser muito mais divertidas do que as cerimônias oficiais do estado brasileiro, embora essa seja uma meta extremamente baixa para se bater. Na hora de escolher uma faixa para colocar aqui, eu fiquei entre essa e a sexta, “Uurkan Kaadonaya (I Want You)”, na qual o tecladista engata a quinta, sexta, sétima e oitava marcha, mas acabei optando por essa para mostrar a voz linda da Asma Omar, cantora do grupo.

Dua Saleh — “umbrellar”, do EP ROSETTA

Usa-se gênero neutro para se referir a Dua Saleh em tudo que eu li sobre elu até agora, motivo pelo qual vou fazer a mesma coisa (em inglês, usa-se “they” como pronome singular de gênero neutro; em português, “eles” é masculino (e “elas, feminino), o que nos exige um pouco mais de criatividade). De toda forma, Dua Saleh nasceu em Kassala, no Sudão, mas saiu do país aos 5 anos de idade quando seus pais se tornaram refugiados da segunda guerra civil sudanesa. Segundo essa matéria do them, a família ficou na Eritreia num capo de refugiados por um tempo, depois se mudou diversas vezes até se estabelecer em Minneapolis, nos EUA. Dua Saleh, ao longo desse tempo, foi ativista e poeta (termo de gênero neutro, segundo Cecília Meireles) antes de começar a fazer música. E começou fazendo slam-poetry em bares que deixavam o microfone aberto.

ROSETTA é seu segundo EP, e seu nome é uma homenagem à Sister Rosetta Thorpe, a “mãe do rock”, e à relação dela com a cantora de gospel e blues Marie Knight. O som é uma música eletrônica ominosa com forte influência do hip-hop (se bem “umbrellar”, a música que eu escolhi, não tem muito desse estilo), lembrando as experimentações da FKA twigs em alguns momentos (“hellbound” por exemplo). Outras, como “windhymn”, são mais silenciosas e misteriosas. Em “smut”, um pedaço é cantado em árabe, língua materna de Dua Saleh, e segundo sua entrevista ao them, a letra mistura pronomes masculinos e femininos em árabe, além de criar palavras árabes de gênero neutro. Essa mistura toda resulta num som muito original e, no caso de “umbrellar”, bem emocionalmente carregado e marcante. Um EP que me impressionou muito positivamente.

Victor Xamã — “Cobra Coral”, do EP Cobra Coral

O Victor Xamã, ou “VXAMÔ, é um rapper nascido em Manaus e radicado (pelo que eu saquei das letras desse EP) em São Paulo atualmente. Ele vem lançado coisa desde pelo menos 2015, quando ele soltou dois discos cheios. E ele também esteve bem ativo ao longo de 2019: pelo que eu li, ele lançou faixas junto com o nill e a Brisa Flow, além de abrir uns shows do Baco Exú do Blues. Cobra Coral é o primeiro trabalho mais comprido que ele lança desde 2015 (pelo menos é o único que tá no Spotify), e segundo essa matéria, o nome vem tanto da cobra venenosa quanto de um caboclo da umbanda “que trabalha com a energia das matas se apresentando de forma tranquila, concentrada e sábia”. Essa descrição não fica muito longe do que eu diria sobre o próprio rapper julgando pelas rimas e pela voz grave nesse EP na real.

Mas o que me fisgou de vez nesse trabalho (e que também faz sentido com o nome escolhido) é a produção. A minha impressão é que as batidas e os arranjos são muito mais simples e esparsos do que em outros trampos de rap atuais, e com excelentes resultados. Em várias faixas daria para imaginar uns chimbaus de trap fazendo “tricttctctctct” muito agudo, mas felizmente eles são usados de maneira bem mais econômica. A faixa-título, com o sample de flauta misteriosa rodopiando por cima da batida como uma nuvem de fumaça, foi a que eu senti que levou mais longe essa estética misteriosa, e foi a que eu mais curti, mas o EP como um todo mostra um som bem original e envolvente.

Kdu dos Anjos — “Zig Zag”, do álbum QUANTO TEMPO HEIN, KDU?!

Segundo o Djonga, na faixa “Interlúdjo” desse álbum, o Kdu dos Anjos faz pela Favelinha o mesmo que ele (Djonga) faz pela comunidade dele, também em Minas Gerais. Não é pra menos: o Centro Cultural Lá da Favelinha, que ele idealizou e construiu, teve projeto aprovado no edital Petrobrás Música em Movimento, o que, em termos de difusão cultural, é excelente. Mas enfim: esse é o cara por trás desse álbum (que faz jus ao nome: segundo o Spotify, o trabalho anterior dele é de 2015). É um disco de rap com umas rimas bem fodas (a primeira faixa em particular é excelente nesse aspecto) e algumas influências musicais um pouco diferentes do que se costuma ouvir no gênero. “Zig Zag”, que eu escolhi para colocar aqui, me chamou atenção principalmente por colocar genialmente escravos de Jó no refrão, mas é uma faixa super redondinha também.

Eu não saquei só de ouvir o disco, mas segundo o jornal mineiro O Tempo, ele foi gravado já durante a quarentena. E pra fazer isso respeitando o isolamento social, o artista e o produtor tiveram que se mudar para o estúdio. Mas tem coisas no disco que foram compostas há bastante tempo (de acordo com essa entrevista), então não é como se eles tivessem passado o período todo criando e gravando — mais gravando que criando, imagino. E embora eu tenha certeza de que vivência dele com o Lá da Favelinha esteja presente no disco, isso não é algo que fique muito estampado em todas as faixas. Eu na real só fui saber disso quando comecei a pesquisar sobre quem tava por trás da música, e isso me fez curtir o álbum mais ainda.

Jup do Bairro — “ALL YOU NEED IS LOVE”,do EP CORPO SEM JUÍZO

Se você já viu o documentário Bixa Travesty da Linn da Quebrada, você já viu a Jup do Bairro (se nunca viu, por favor vá ver). Eu fui ver o documentário por causa da Linn mesmo, e quando vi que a Jup do Bairro ia lançar música, já fiquei de olho. Eu ia gostar mesmo que fosse um par de singles só, mas o EP CORPO SEM JUÍZO é um trabalho excelente. Ele consegue ser divertido, sério e inteligente (e frequentemente os três ao mesmo tempo), além de ser musicalmente inventivo e, com 27 minutos de duração, mais longo do que muitos álbuns que tem saído recentemente. A Badsista assina a produção de várias faixas, e eu sou fã dela, então já sabia que ia vir coisa boa, mas mesmo assim me surpreendeu positivamente a disposição de usar sons inusitados. “PELO AMOR DE DEIZE” por exemplo tem guitarra distorcida.

Ler ou ouvir a Jup do Bairro falando sobre gênero e sexualidade é bem interessante (em particular, essa entrevista eu curti bastante). Mas a música dela não é menos merecedora de ser discutida. Pensando agora, eu nem sei em que gênero eu colocaria esse disco. Tem um pouco de rap, um pouco de funk, duas das sete faixas são quase recitativos (só voz, sem uma melodia muito definida) e a linda “LUTA POR MIM”, além das rimas excelentes, tem uma produção que não é bem o que se esperaria de um hip-hop. Assim como (e não menos que) o Pajubá, o incrível álbum de estreia da Linn da Quebrada, me parece um disco de vanguarda da música pop. Na hora de escolher uma faixa para colocar aqui, eu não queria escolher “ALL YOU NEED IS LOVE” por ele já ser meio que a “faixa de trabalho” do EP (não é um cover dos Beatles aliás) e por ter as participações da Linn e do Rico Dalasam. Mas não teve jeito: a gargalhada que eu dei ouvindo a música enquanto lavava a louça foi um dos momentos mais memoráveis da minha quarentena.

Hinds — “Good Bad Times”, do álbum The Prettiest Curse

Hinds é uma banda composta por quatro moças de Madrid na Espanha. Elas se chamavam “Deers” (Corças, em português), mas mudaram o nome para Hinds (que tem o mesmo significado) depois de serem ameaçadas de processo por uma banda chamada The Dears (que hoje em dia tem menos de 20% do número de ouvintes mensais que elas no Spotify). O som delas é um rock alegrinho, e geralmente tem uma produção bem simples e arranjos bem diretos, mas nesse álbum elas deram uma incrementada no som, e o resultado são faixas bonitas e divertidas que soam bem maiores do que só quatro pessoas tocando música juntas. E elas também misturam letras em inglês e espanhol, o que eu acho bem legal.

Esse é o terceiro disco delas e tava marcado pra sair em abril, mas acabou sendo adiado por causa da pandemia. Também por causa da pandemia elas acabaram gravando os clipes para duas faixas do disco (“New For You” e “Come Back and Love Me”) cada uma na própria casa. A “Come Back and Love Me” também ganhou tutoriais em vídeo, com cada uma das integrantes do grupo postando no Instagram um vídeo de como tocar sua parte na música. Imagino que o fato do disco ser lançado no meio da pandemia e da turnê de promoção do álbum ter que ser cancelada tenha motivado esse tipo de interação com os fãs, e eu achei uma ideia bem fofinha. E o álbum todo também é bem divertido, então é ótimo para passar tempo durante a quarentena.

SiM — “YO HO”, do álbum THANK GOD, THERE ARE HUNDREDS OF WAYS TO KiLL ENEMiES

Vou ser sincero: eu fui ouvir esse disco do SiM (quarteto de rock japonês cujo nome é uma abreviação de “Silence iz Mine”) na zoeira. Ouvi o começo e pensei “kkkkkk emo japonês”. Parei de ouvir? Não. Ouvi o disco inteiro, curioso para ver o que vinha na sequência, e lá pela metade foi necessário admitir que era bom mesmo. Os quatro moços (que tem nomes artísticos como SHOW-HATE [guitarra] e SIN [baixo]) sabem tocar bem e forte seus respectivos instrumentos, e várias faixas tem convenções super afiadas e passagens surpreendentemente técnicas. Surpreendente também são so momentos (sim, no plural) em que o som do grupo vai de um quase-metal para um ska, depois para um refrão com cara de Simple Plan (pensando aqui na faixa “HEADS UP”). E sim, eles tem aquele aspecto visual-kei de se vestir em roupas extravagantes, mas não tocam pior por isso.

Sim, tem muita coisa diferente rolando aqui, se misturando de maneiras que nem sempre dão muito certo. Mas a real é que quando dá certo, não tem nada muito parecido com isso. E depois, quando eles fazem faixas mais diretas (como essa que eu destaquei na playlist), eles mandam bem. Afinal, a banda, por mais que eu não conhecesse até pouco tempo atrás, já tem mais de 15 anos de estrada, e esse é o quinto álbum deles: fica evidente, ouvindo o disco, que esses anos não passaram em branco para eles. Na “YO HO”, o que me chamou a atenção (além do refrão grudento) foi a precisão e agilidade do primeiro riff da faixa, que se repete várias vezes e poderia ter saído de um disco do Overkill, além dá ótima performance vocal do cantor (chamado MAH). Não descobri por que ela se chama YO HO, no entanto.

Nihiloxica — “Black Kaveera”, do álbum Kaloli

Outra banda que já apareceu no 10 do Mês (em dezembro de 2019, mais especificamente), o Nihiloxica é o encontro de duas tradições musicais bem diferentes. De um lado, o Nilotika Cultural Ensemble, representado por quatro percussionistas de Uganda dedicados aos ritmos de Buganda (um dos reinos do país). De outro, os produtores britânicos pq e Spooky-J. Eles já tinham lançado dois EPs que eu ouvi (o mais adequado seria dizer “pelos quais eu fui atropelado”) com empolgação e que me fizeram esperar ansiosamente por essa estreia. Ao fim da primeira audição, o meu pensamento foi algo nas linhas de “por que um país precisaria de Elon Musk e da SpaceX para ir a Marte se ele tem esse grupo de percussão capaz de levar a humanidade muito, mas muito além dos limites do nosso sistema solar?”. E a minha atitude foi: ouvir de novo. Eu ouvi enquanto fazia faxina num sábado, e pensa numa cozinha que ficou brilhando.

O som é altamente dançante e divertido (como se poderia esperar de um grupo de percussão). Quando os andamentos ficam mais rápidos (o que acontece com frequência), ele também se torna extremamente empolgante. Os produtores europeus contribuem com alguns sons eletrônicos estranhos que dão um toque sombrio à mistura e servem de interessante tempero à batucada. Esse toque sombrio tem relevância temática: segundo a página do álbum no bandcamp, Kaloli é o nome do pássaro retratado na capa do disco, uma ave enorme comedora de carniça que se refestela na poluição das grandes urbes do país. Ao mesmo tempo, com suas largas asas, ela voa graciosamente a altitudes impressionantes. Me lembra algo que meu pai falava sobre urubus: um bicho que voa bonito assim não pode ser ruim.

Esse vôo bonito, afinal, é o que mais apareceu para mim durante a audição: poucas bandas que eu ouço hoje em dia são capaz de transmitir uma energia tão avassaladora quanto eles. Não só isso: eles mantêm esse nível altíssimo de energia ao longo de um disco de uns 50 minutos, ao mesmo tempo desenvolvendo variações muito interessantes de cada ritmo, criando só com percussão uma música de tamanho orquestral. Eu lembro de já ter ouvido a lenda de que os tambores guardam espíritos, e quando são bem tocados eles fazem os espíritos encarnarem em quem os ouve, provocando a vontade de dançar, e o som desse álbum é forte evidência nesse sentido.

Michael Olatuja — “Lagos Pepper Soup”, do álbum Lagos Pepper Soup

O Michael Olatuja é um baixista nascido em Londres, crescido em Lagos, na Nigéria, e atualmente radicado em Nova York depois de estudar na Manhattan School of Music. E ele deveria colocar um aviso no começo do disco dizendo que nenhum baixo foi danificado durante as gravações, porque não é o que parece quando você ouve (e talvez, de fato, não seja o que aconteceu). Além de tocar cabulosamente bem, ele também mistura ritmos e batidas do oeste africano com estruturas e harmonias de jazz, além de misturar letras em inglês e iorubá. As faixas dele também tem um equilíbrio bom entre coisas que parecem compostas e ensaiadas, por um lado, e coisas que soam espontâneas e improvisadas, por outro.

Ele tem outros dois discos, de 2009 e 2013, além de outras aparições que ele deve ter feito nos últimos sete anos, mas o Lagos Pepper Soup é um disco quase gigante demais. Ele tem mais de uma hora de duração, e cada música é mais impressionante que a anterior, e por um motivo diferente. Com quase nove minutos, “The Hero’s Journey” parece uma trilha de filme da Disney num momento e jazz meio new age no outro. “Leye’s Dance”, mais pro final, tem o saxofone ótimo do Joe Lovano, e “Brighter Day” tem a cantora inglesa Laura Mvula. Mas a faixa-título foi a que conquistou meu coração pelo trabalho de baixo de outro mundo e por ter a cantora Angelique Kidjo, que eu adoro e que já apareceu aqui no 10 do Mês em abril de 2019. É um groove delicioso. Se a sopa de pimenta da capital nigeriana for tão boa quanto esse disco, vale a viagem só para experimentar.

E esse foi o 10 do Mês de Junho de 2020! Obrigado mais uma vez pela atenção! Daqui uns 30 dias tem mais uma lista dessas, dessa vez sobre o mês de julho. Quer me contar de algo que vai sair, ou de algo que eu deixei passar? Manda mensagem lá no Twitter, ou aqui no Medium mesmo. Fique bem, fique em casa, cuide de quem você ama e escute música tanto quanto possível. Daqui a pouco eu já tô de volta!

Quer mais? O 10 do Mês de Maio tá aqui!

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Gustavo Sumares

Jornalista, roteirista, editor, revisor. Falo aqui sobre música, especialmente por meio do 10 do Mês!