City pop / Pop cidade

Gustavo Sumares
5 min readMar 28, 2023

Se quiser só ouvir: https://open.spotify.com/playlist/6nzJQ6hqPRnKjHJVQ3nCIV?si=df950a36bb5849dd&nd=1

Lá em 2017, uma das experiências musicais mais legais do ano veio de um canal do YouTube chamado Starfunkel. Mais especificamente, o canal soltou uma playlist de música japonesa dos anos 80. Eram sons super suingados, com performances vocais empolgadas, batidas dançantes, linhas de baixo mirabolantes e, frequentemente, um naipe de metais arregaçando.

Era como se todos os artistas tivessem ouvido os discos do Michael Jackson com o Quincy Jones e decidido (corretamente) que toda a música doravante precisava ser daquele jeito. Mais tarde eu descobriria que esse estilo se chama City Pop.

Muita gente acabou conhecendo esse gênero por causa de uma despirocada do algoritmo do YouTube, que passou a recomentar a faixa “Plastic Love” da Mariya Takeuchi para qualquer pessoa que tivesse orelha. A faixa, com mais de 30 anos de idade, voltou às paradas no Japão, e levou a cantora novamente aos palcos.

Foi um movimento incomum do que um entrevistado da Folha de São Paulo identificou com precisão, na época, como o YouTube promovendo algo que não era terrível para a vida em sociedade. Se você não deu a sorte/azar de ser impactado por essa recomendação uns anos atrás, eis aqui uma chance de mudar essa realidade.

Depois de ter ouvido aquela playlist em 2017, eu era alvo fácil para o algoritmo, e de fato curti a canção. Descobri que a Mariya era inclusive casada com o Tatsuro Yamashita, um dos cantores que tinha na playlist do Starfunkel.

Não eram só os dois que compunham desse jeito. O estilo teve bastante sucesso no Japão pré-crise financeira da década de 90, então muitos artistas embarcaram. Conforme eu fui fuçando, fiquei bróder de nomes como Tomoko Aran, Noriyo Ikeda, Kingo Hamada, Yurie Kokubu, Momoku Kikuchi, Toshiki Kadomatsu e mais uma galera, incluindo muitos que (como o próprio Tatsuro Yamashita) não estão no Spotify até hoje.

As características que eu citei no começo são comuns a todos eles, em maior ou menor grau, com algumas variações. O Kingo Hamada por exemplo tem uns andamentos mais lentos, numa vibe mais “fim de noite”. Alguns deles também vão mais pro lado dos sintetizadores do que dos metais, e fica um som meio Alpha FM. Outros, como a Junko Yagami, tem umas faixas pesadíssimas, como essa que tá aqui embaixo.

Tem também a Miki Matsubara e a Yasuha, duas cantoras dessa época que fazem muito sucesso no Tiktok por causa de algum capricho dos robôs que controlam nossa atenção. Não que “Stay With Me” (da primeira) e “Fly-day Chinatown” da segunda não sejam excelentes. Mas além da musicalidade excelente e da sonoridade afiada, por que será que elas fizeram tanto sucesso naquela época? E por que nos chamam a atenção hoje?

A resposta que me vêm à mente é que esse estilo guarda em si uma mensagem sonora de otimismo. Foi produzido num tigre asiático pré-crise asiática da década de 90, quase sem desemprego, com uma população com alto poder aquisitivo. As letras falam de curtição na noite, dorzinha de coração, amores intensos e outros assuntos de quem não tá passando fome. Os sintetizadores digitais e a produção cromada fruto do equipamento de estúdio sofisticado a que os músicos tinham acesso naquele momento são a face sonora desse momento de bonança. Talvez hoje a simplicidade daquele tempo sem redes sociais nos atraia? Talvez essa música comercial, hoje desligada de seu mercado, possa mostrar seu verdadeiro charme?

Enfim. Minha namorada também curtiu o estilo, e num dia aleatório, enquanto a gente ouvia “Estrelar” do Marcos Valle, ela notou uma semelhança. Metais, levada suingada, vocais empolgados, um certo conjunto de timbres que trazem à mente uma propaganda de guaraná Brahma… Fazia sentido.

Haveria mais músicas brasileiras que tinham um estilo semelhante? Pensamos em pelo menos uma: “Bicicleta”, do mesmíssimo. Ela tem ainda a vantagem de ter um clipe maravilhoso, algo bem raro considerando que ela é de 1984. Sério, assista isso. Eu comecei assistindo achando que seria tosco, mas estava muito errado (mas também certo):

Eu não fui o primeiro a notar a semelhança entre essa sonoridade e o city pop. Já tinha várias playlists de “city pop brasileiro” no YouTube e no Spotify, mas todas elas me pareciam um pouco imprecisas. Algumas das faixas em japonês estavam mais pra Enka (um estilo que é tipo “sofrência” em japonês) do que pra City Pop. Ou em alguns casos tinha faixas de artistas brasileiros que se destacavam muito das outras. De modo que eu resolvi fazer a minha.

Uma coisa que eu notei foi que muitas das músicas de “Pop cidade” (o “city pop brasileiro”) tinham o dedo do Lincoln Olivetti, um cara que bem que merecia uma biografia. Falecido em 2015, ele foi um produtor muito popular nos anos 80, tendo trabalhado com artistas de Gal Costa a Sidney Magal, Angela Rô Rô, Jorge Ben e muito mais.

Lendo a página dele na Wikipedia, a impressão que fica é que ele (além do talento) tinha uma proximidade com grandes gravadoras que facilitava o acesso a músicos, sintetizadores, microfones, equalizadores, compressores e outros equipamentos necessários para gravar algo de padrão “comercial” naquela época. Época, aliás, em que a indústria cultural já estava avançando na homogeneização do gosto do ocidente inteiro.

De forma que o “som do sucesso comercial ” do Japão e daqui talvez fossem semelhantes. Ele é creditado, por exemplo, nessa faixa de 1988 da cantora Solange (que sumiu de maneira muito misteriosa), que foi tema de novela e entraria na minha playlist (se estivesse no Spotify).

No Discogs, ele aparece em mais de 640 discos, incluindo vários com faixas que eu acabei incluindo na playlist, como “Magicamente” (do Bebeto) e até algumas do Tim Maia. Evidentemente o cara sabia o que estava fazendo.

Outra pessoa que sabia (e ainda sabe) o que está fazendo é a Sandra de Sá. O disco Vale Tudo dela, além de ter sido relançado na gringa pela Mr. Bongo, é uma obra prima do Pop cidade. “Pela Cidade” e “Guarde Minha Voz” entraram na playlist.

A playlist inteira está aqui, se você quiser conferir. No fim, tentei deixar só coisas do Japão e Brasil, só de 1980 a 1990, e que fossem o mais próximo possível desse estilo. A maneira correta de ouvir é no shuffle, tentando adivinhar se a próxima música vai ser cantada em português ou japonês.

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Gustavo Sumares

Jornalista, roteirista, editor, revisor. Falo aqui sobre música, especialmente por meio do 10 do Mês!