10 do Mês — Julho de 2021

Gustavo Sumares
19 min readAug 7, 2021

Escute aqui: https://open.spotify.com/playlist/5aXDcKGWQ0fnwhFIWP5vFC?si=aa9987b4de3c424b

É com imensa alegria no coração que chegamos ao 10 do Mês de Julho de 2021, no qual destacaremos 10 faixas lançadas neste mês por artistas da Alemanha, Brasil, Congo, Noruega e mais. E isso tudo apesar das temperaturas absolutamente polares de que esse país vem padecendo, como se precisasse de mais desgraças.

Quem me viu reclamando do frio no mês passado já pode imaginar o que eu achei de julho. Se não congelei, foi graças, em grande parte, ao calor no coração que a primeira dose da vacina me trouxe. Em outra parte, foi por ver vários amigos e parentes meus sendo vacinados também. E, numa parte menor, foi por causa do tanto de música legal que eu ouvi ao longo do mês (eu gosto de música, mas tem que por as coisas em perspectiva).

Foi difícil montar a playlist de julho. Foi outro mês daqueles que poderia ter saído de 30 jeitos diferentes. Mas, no fim das contas, estou feliz com o resultado. uanto à ordem, foi outro desafio: no mês passado eu testei misturar mais o clima das músicas ao longo da playlist. Mais pessoas que o normal vieram me falar que curtiram a seleção, o que eu atribui (nada cientificamente) a essa mudança.

Portanto, busquei adotar novamente a tática de misturar faixas com climas e emoções diferentes. Ainda é preciso que entre elas haja algum fio que dê coesão, o que torna o processo um pouco mais difícil. Mas no fim, vale a pena. Ouvir essa playlist de cabo a rabo será (espero) uma bela viagem com final feliz. E depois, se você quiser ouvir mais coisa que saiu em julho, olha só tudo que você pode experimentar:

Menções honrosas

ASHWARYA — NOCTURNAL HOURS: EP de estreia da cantora pop de ascendência indiana. Um trabalho curtinho mas bem original que mistura várias coisas interessantes na linguagem do pop, como andamentos variáveis e algumas percussões orientais.

D.Zúk — Ishkhan: Disco de estreia de música eletrônica do produtor armênio Hovhannes Sargsyan, assinando como D.Zúk. Ishkhan (algo como “peixe” em armênio, segundo o bandcamp) é uma jornada sonora que mistura batidas e sintetizadores mais tradicionais com instrumentos diversos da região. Bem doido.

Les Filles de Illighadad — At Pioneer Works: Um quarteto de moças de uma cidade do meio do Niger tocou dois shows com ingressos esngotas em Nova York para uma plateia embasbacada. Esse álbum é o registro desses shows. Três violões, quatro vozes e algumas percussões resultando em algo único.

Mr. Spaceman — Park: O quinto álbum do projeto autoral do guitarrista cearense Régis Damasceno, membro do Cidadão Instigado e de vários outros projetos legais, como o duo instrumental Porto. Trabalho belo e onírico com melodias e clima de psicodelia sessentista, além de produção afiadíssima.

Overdrive Saravá — Cigarra: um EP muito daora do quinteto de rock de Niterói. “Rock” é um rótulo redutor, porém: há muitta coisa diferente misturada nesse EP, incluindo uma sofisticação musical e uma narratividade nas letras que me remeteram a rock progressivo. Quero ouvir mais ainda.

e bora lá pro

10 do Mês de Julho de 2021

[Se não quiser ouvir tudo de uma vez, esse mês tem 3 partes, na formação 4–2–4.Então escuta as 4 primeiras depois vamos conversar ]

DARKSIDE — “Lawmaker”, do álbum Spiral

Cacete, faz 8 anos já que saiu o primeiro disco do DARKSIDE (Psychic, de 2013). Eu lembro porque na época eu resenhei ele pro Move That Jukebox, e foi difícil explicar exatamente o que era aquela colaboração do produtor chileno Nicolas Jaar com o cantor e instrumentista estadunidense Dave Harrington. Era algo bem diferentão e eu gostaria de ter ouvido mais deles. Se bem que o Nicolas Jaar lançou tanta coisa legal solo de lá para cá que praticamente não conta. Tipo o disco do Against All Logic, que apareceu no 10 do Mês de Fevereiro de 2020. Mas assim que eu botei pra rodar esse novo do Darkside, eu lembrei do estranhamento e fascínio que o primeiro álbum me causou.

Naquela época eu nem conhecia direito o trabalho do Nicolas Jaar. De lá pra cá, ouvi mais do que ele já lançou e agora tenho a impressão de que a pegada mais “psicodélica” estilo Pink Floyd anos 60 do som do duo vem de Harrington — que também é quem canta, nunca com uma voz muito normal. Suspeito que seja ele também que traga os violões e as guitarras surpreendentes, como o solinho agudo em “I’m the Echo”. Quando Jaar une sua produção rítmica, inventiva e percussiva a isso, o resultado é uma espécie de trip-hop passando pelo kraut-rock.

A música frequentemente tem uma qualidade meditativa e etérea. “The Question Is To See It All” é pouco mais que algumas linhas vocais agudas, um baixo discreto e uma percussão que parece feita de um jogo de louças. A abertura, “Narrow Road”, tem um ritmo bem lento, ao qual a voz processada e distante dá um tom quase iniciático — me remeteu ao Temple do 10 do Mês de Julho de 2020. A própria faixa-título parece flutuar sobre um violão que quase lembra uma cítara e alguns sinos suave que soam no fundo.

No fim, porém, as faixas que eu mais curti foram as que conseguem unir essas qualidades viajadas e contemplaticas a um ritmo um pouco mais engajante. É o caso de “Liberty Bell” e de “Lawmaker”, minha favorita. O jeito como ela sai de quase nada e vai crescendo com um monte de sons diferentes foi algo que eu curti bastante. Nessas duas eu sinto que as principais qualidades dos dois produtores se unem em algo bem original, e entendo por que eu achei tão difícil descrever o som da estreia deles.

Linn da Quebrada — “mate & morra”, do álbum Trava Línguas

Por mais que a Linn da Quebrada já seja uma artista bem estabelecida, não me pareceu certo fazer uma playlist do mês de Julho sem destacar nada do Trava Línguas, segundo álbum dela. Eu acho foda demais. A primeira vez que eu vi ela foi lá pra 2015 ou 2016 numa festa de rua no centro de São Paulo, acho que foi o SP na Rua. Enquanto eu passeava pelo centro de madrugada ela tava cantando com uma batida eletrônica num coreto numa praça. Eventualmente a batida silenciou e ela continuou, entre cantar e declamar, e eu fiquei lá um tempão só curtindo. Naquela época ela já tinha presença de palco de popstar, e desde então só melhorou.

Trava Línguas é o sucessor da estreia dela, Pajubá, de 2017. Foi um álbum que eu fiz questão de comprar em vinil de tanto que eu curti, e que escolha boa que foi: o miolo do disco tem uma foto de um dedo entrando num cu, que fica bem no furinho do LP, e que fica girando enquanto você escuta. Mas fora isso, era um álbum incrivel. A música da Linn bebe de um monte de fontes diferentes, do hip-hop ao vogue, e as rimas certeiras dela, que misturam erotismo, humor, questões sociais e estudos de gênero, estão num nível à parte. Até a Jup do Bairro lançar o EP CORPO SEM JUÍZO em junho de 2020, não tinha quase nada parecido com ele. Esse segundo trabalho vem ampliar o gênero, em vários sentidos.

Os mesmos elementos que fizeram a estreia da Linn ser tão boa persistem aqui, mas ela parece ir mais longe em todas as direções. Não tinha nada no Pajubá com o mesmo clima misterioso de “cobra rasteira”, ou o aspecto introspectivo estilo Adriana Calcanhotto ou Marina Lima de “I missil”. Essa faixa também tem uns toques de trompete que ficam bons demais, e tudo isso funciona maravilhosamente aqui. Essas faixas fazem oposição a outras com batida mais dançante, como “dispara”, “pense & dance” e “mate & morra”, que aparece aqui, mas há uma coesão entre elas que deixa claro que ambas são duas faces de uma mesma moeda. Parte dessa coesão vem das produções sempre fodas da BADSISTA, que arrasa sempre que aparece, e da própria voz da Linn, que já era boa mas só melhorou de 2017 para cá.

Há ainda mais surpresas no álbum, como a singular “eu matei o Júnior” (com Ventura Profana, que apareceu no 10 do Mês de Julho de 2020) e a bela “tudo”, centrada em piano e voz, no finalzinho do disco. Praticamente cada faixa do trabalho traz sons diferentes e uma faceta nova da artista, e todas parecem igualmente interessantes. Dá uma ouvida lá e me diz se tinha como deixar esse álbum de fora da playlist desse mês.

Rey Sapienz & The Congo Techno Ensemble — “Zuwa Ba Risk”, do álbum Na Zala Zala

Lançado pelo excelente Nyege Nyege Tapes, o álbum Na Zala Zala é o primeiro registro do produtor congolense Rey Sapienz com os colaboradores Papalas Palata e Fresh Dougis, formando o Congo Techno Ensemble. Além de produtor do conjunto, Sapienz também é co-fundador do Hakuna Kulala, um dos selos que compõem o Nyege Nyege Tapes, e ministra aulas de produção musical para jovens de Kampala. Como esse disco deixa claro, experiência ele tem de sobra.

Esse é um álbum de techno pesado em vários sentidos. É música eletrônica com forte ênfase na parte rítmica, embora não naqueles ritmos quadradões tuts-tuts. Vários sons eletrônicos também aparecem, mas sempre com uma finalidade mais atmosférica do que melódica — é uma abordagem quase industrial à produção. Faixas como “Posa na Bika” e “Esala Rien”, pensando bem, tem pouca coisa em termos de “notas musicais”.

Não faz falta: além das batidas e ruídos tensos, o coletivo recheia cada composição com uma série de vocalizações de todos os tipos. Desde rimas em lingala (um idioma que ainda não está no Google Tradutor) até canto sem palavras e uma série de vocalizações, são as vozes dos três membros que guiam a audição ao longo das nove faixas e 34 minutos do álbum.

O resultado consegue ser ao mesmo tempo empolgante e profundamente tenso. Segundo a página do disco no bandcamp, é um reflexo da experiência dos membros ao longo de sucessivas guerras civis no Congo. Mas também é um som absolutamente original, que pega recursos e técnicas de produção relativamente batidas e cria algo intenso pra caramba. “Zuwa Ba Risk” me parece ser a que mostra melhor essa intensidade.

Rsn — “A Moth to Light feat. Jb Nimble”, do álbum Motion

O Rsn é um produtor musical grego, e bem experiente por sinal: ele tem quatro álbum no Spotify, o primeiro dos quais é de 2013. Dei uma bela vasculhada na internet para tentar descobrir o nome dele, mas não encontrei, e quando o nome tá difícil de achar eu suponho que é porque a pessoa não quer revelar e deixo quieto. Fora isso, as páginas do disco e do artista no bandcamp são bem enxutas, mas informam que ele reside em Atenas.

O estilo da música dele fica na grande área do hip-hop, mas nem sempre no centro dela. A abertura desse álbum por exemplo é meio trip-hop, assim como a quinta faixa, “Way Out”. São produções de andamento médio, com batidas bem marcadas, arranjos densos, que criam um clima soturno, meio film noir. “Way Out” usa até um trompete misterioso pra dar essa sensação, além de um instrumento de cordas cuja sonoridade me pareceu oriental.

Mas em sete das nove faixas desse álbum de 30 minutos, ele recebe convidados para cuidar da parte vocal. A cantora Thaliah é a única a aparecer duas vezes, no R’n’B lento de “Out of the Cage” e na ominosa “Another Fight”, e ela arrasa nas duas. Outras faixas contam com rimas também, cortesia de MC Yinka, JB Nimble e Lefteris Samson — este último aliás também canta melodiosamente na dolorosa “Stay With Me”.

Foram as rimas de JB Nimble na “A Moth to Light” que mais me encantaram, porém. Na faixa, o rapper mostra aquele tipo de flow que é delicioso de ouvir mesmo que você não entenda nada que ele está cantando. Achei foda também a maneira como o refrão é uma longa frase na qual ele insere rimas internas, e que parece que não vai caber na métrica mas no fim encaixa certinho. O produtor dá espaço pra ele, com um beat que é basicamente pianinho, baixo e bateria simples. É a penúltima faixa do disco, e a seguinte, “Victory”, fica no mesmo nível… mas eu não gosto de colocar aqui a faixa final dos álbuns pra não dar spoiler.

[Agora vamos para um breve intervalo instrumental. Ouça as próximas duas e depois venha ler sobre elas]

Bacao Rhythm & Steel Band — “My Jamaican Dub”, do álbum Expansions

Este é o terceiro álbum do Bacao Rhythm & Steel Band a pousar no Spotify. Eu não imaginava mas, de acordo com o bandcamp, o conjunto é capitaneado por um alemão (Björn Wagner) que morou alguns anos em Trinidad e Tobago. Lá, conheceu e se apaixonou pelo “steel drum” (“tambor de aço” na tradução literal), um instrumento de percussão afinada típico da região, conhecido por sua aparição sampleada na faixa “PIMP” do 50 Cent. Segundo a Wikipedia, o instrumento foi inventado pelas pessoas escravizadas da região e até hoje contina sendo produzido de maneira artesanal.

De fato, o grupo tem um cover dessa faixa no Spotify. Mas também tem muito mais coisa legal também. É difícil demais achar informação mais precisa sobre o grupo na internet. Mas dá para ouvir no disco que Wagner é por bateria, baixo, guitarra e de vez em quando metais também. Os tambores de aço dão um clima alegre às faixas, nas quais eles ficam responsáveis principalmente pelas linhas melógicas. Mas o acompanhamento, com doses letais de suingue, de vez em quando rouba a cena também. Os arranjos são todos muito bem feitos e na real, Expansions já seria um disco de funk bem bom mesmo sem os tambores de aço — mas fica ainda mais legal com eles.A mixagem e masterização com ênfase nas frequências médias também contribuem com um ar muito foda de anos 60–70 ao som.

Muitas das faixas do disco são covers de músicas pop ou hip-hop, como “Dirt Off Your Shoulder” (do Jay-Z) ou “The Healer” (da Erikah Badu). Outras, como a abertura “Tough Victory”, são originais do conjunto. Mas ouvindo o disco de cabo a rabo, não dá pra sacar imediatamente quais faixas eles compuseram e quais vieram de outros artistas, a não ser que você conheça as originais.

Por exemplo, “My Jamaican Dub” me parece ser original deles: dei aquela revirada no Google atrás da original e não encontrei. E de fato, ela parece ter sido feita com um conjunto de tambores de aço em mente. São pelo menos dois ou três tocando a melodia juntos, com um acompanhamento discreto de baixo, bateria, guitarra e algumas percussões. É pouca coisa, mas a galera toca com uma precisão e firmeza que fazem a faixa balançar maravilhosamente.

Cochemea — “Mimbreños” do álbum Vol. II: Baca Sewa

Cochemea Gastelum é um saxofonista de ascendência indígena natural da Califórnia. Ele era um dos Dap-Kings, a (fenomenal) banda da falecida Sharon Jones. Vol. II: Baca Sewa é o seu terceiro álbum solo no Spotify,um trabalho muito legal e singular, e por mais que eu procurasse eu não encontrei o volume I. Mas pelo menos no bandcamp ele explica o que é “baca sewa”: é o nome original de sua família antes da colonização espanhola.

A história de sua família é algo importante para o trabalho. Lá na página do disco no bandcamp ele conta, por exemplo, que a quarta faixa (“Chito’s Song”) é um tributo a um tio dele, e que a sexta faixa (“Black Pearl”, uma das minhas favoritas) relembra seu bisavô, “herdeiro de um legado de povos indígenas escravizados para trabalhar como mergulhadores coletores de pérolas no Mar de Cortez”. Ancestralidade é um tema que frequentemente recebe tratamentos pesados, mas as faixas do disco tem todas uma simplicidade e assertividade em sua composição que dão a elas um aspecto divertido e quase lúdico.

É o caso por exemplo da “Mimbreños”, que tem backing vocals que ficam constantemente respondendo as frases do saxofone. As vozes dão a impressão da faixa ter sido gravada num momento de descontração. O ritmo ternário da uma ginga legal à composição, que tem um solo bem daora de saxofone também, antes de voltar à melodia principal com os vocais respondendo. Deve ser algo legal demais de ver ao vivo.

Os arranjos do disco também me chamaram a atenção. Em geral, as músicas tem um instrumento de sopro que leva a melodia, e esse instrumento é cercado pro várias percussões, algumas afinadas, outras não. Chocalhos, sinos, carrilhões, tambores que soam como taikô, marimba (ou talvez balafon)… todos eles dão as caras com frequência, tocados com uma expressividade que faz deles mais do que mero acompanhamento. Baixo e teclado dão uma fechada nos arranjos, mas aparecem relativamente pouco. E algumas, como a abertura “Burning Plain” e “Baca Sewa (Chant)” tem vozes cantando sem letra — o que eu achei bem impactante. Um disco bem foda.

[Voltamos do intervalo instrumental e vamos até o fim. Pode ouvir as quatro faixas finais e depois volta aqui pra bater papo]

Lantlôs — “Cocoon Tree House”, do álbum Wildhund

Acho que foi em torno de 2016 que eu descobri o disco Melting Sun, lançado em 2014 pelo grupo alemão de metal chamado Lantlôs. Quando eu vi o nome da banda, aliás, eu achei que eles eram brasileiros por causa do acento circunflexo. Mas não: a palavra vem do alemão antigo e significa, literalmente, “sem lar”. Em todo caso, o disco fazia jus ao título (“sol derretendo”): era uma densa bolsa amniótica de guitarras distorcidas e baterias ruidosas em cujo centro brilhava uma luz aconchegante: a voz melódica e profunda do cantor e principal compositor, Marcus Siegenhort. Por mais pesado que fosse, era bem reconfortante e otimista, e casava particularmente bem com o psicoativo que eu tava tomando na época.

O disco seguinte do grupo só saiu agora, sete anos depois, e felizmente manteve essa impressão positiva que eu tinha. Em Wildhund (“cão selvagem” em alemão), é novamente Siegenhort quem comanda todos os instrumentos, com exceção da bateria (que fica para Felix Wylezik, tradicional contribuidor do projeto). Eles continuam a casar guitarras, baixo e bateria pesadões (e eventuais sintetizadores estranhos) com a voz profunda do cantor, mas agora em faixas mais curtas e com forma mais direta. Não há mais longas introduções antes das faixas, algumas têm refrões bem marcantes, e tenho a impressão que os andamentos são mais rápidos que nos discos anteriores. Também também alguma sofisticação técnica, como as modulações rítmicas que acontecem em “The Bubble”.

No entanto, as composições ainda provocam a mesma sensação de ficar submerso sob uma cachoeira — algo que a imagem da capa parece tentar ilustrar. Mas não “submerso” num sentido de “afogando”. Para mim pelo menos, a sensação é mais de interiorização e introspecção. A voz do cantor fica baixo na mixagem, mas as poucas partes que eu consegui entender pareciam falar de coisas positivas. Os títulos de faixas como “Cloud Inhaler” (“inalador de nuvens”), “Dream Machine” (“máquina dos sonhos”) e “Cocoon Tree House” (“casulo árvore casa” em tradução literal) também me apontam nesse sentido.

“Cocoon Tree House”, aliás, foi a que eu mais curti do álbum. Ela talvez seja a mais abertamente “alegre” dentre as faixas, e ao mesmo tempo é uma das mais sonoramente densas. Tem uns vocais harmonizados muito doidos que parecem vir de uma dimensão paralela e depois dão lugar a uma voz mais clara. E tem também um refrão exultante com uma harmonia bem diferentona. Me traz de volta praticamente todas as lembranças boas que eu tinha do disco anterior, e olha que agora eu nem tomo mais o psicoativo.

Ora The Molecule — “Creator” do álbum Human Safari

Ora The Molecule é o nome de um projeto norueguês liderado pela compositora Nora Schjelderup. De acordo com esta matéria antiga mas divertida, o grupo é composto por três músicos noruegueses e tira sua inspiração das vivências imaginárias da personagem que lhes dá nome: “uma molécula personificada que está em toda parte e em lugar nenhum, junto com outras moléculas, construindo nossa realidade”. Além da norueguesa Schjelderup, compõem o grupo também Sju Smatanova (da Eslováquia) e Jan Blumentrath (da Alemanha)

Esta outra página arcaica informa que o grupo se formou em 2016, em Los Angeles (a galera viaja). Tanto no Spotify quanto no bandcamp, Human Safari aparece como o primeiro álbum cheio do grupo, embora eles venham há um tempão lançando singles (alguns dos quais aparecem nesse disco). São 12 faixas e 47 minutos de um pop eletrônico divertido e bem direto, mas com um adorável pendor para o estranho (caso o parágrafo anterior não tenha deixado isso claro).

É esse pendor que torna a estreia do grupo interessante. Por exemplo, “Die To Be A Butterfly” tem aquela produção com baixo sintetizado e batida eletrônica durona mas dançante que resgata o New Order, mas se abre mais no refrão com uma harmonia diferentona e sua letra sobre morrer e virar uma borboleta. Névoas de backing vocals envolventes também tornam a faixa mais interessante e divertida. “Helicopter”, a seguinte, vai no mesmo sentido, e me lembrou um pouco o primeiro disco do Austra.

Outra que eu lembro de ter curtido bastante foi a “Beat Beat Beat”, mais rápida, com letra menos inteligível, mas produção cheia de sons legais e melodias memoráveis. E também, claro, “Creator”, que tem o refrão mais grudento do disco — em parte porque demora pra chegar nele, e quando chega é algo tão grandioso. A faixa tem também um clipe curioso que, segundo esta entrevista, foi gravado pelo namorado da cantora estrelando a irmã mais nova dela.

cajupitanga — “Quase Santo”, do álbum Tradição / Tradução

Mais um artista que eu descobri por indicações do grupo da Sinewave no Facebook (praticamente a única coisa boa que a rede do Zuckerberg ainda tem), o cajupitanga é um duo de Vitória da Conquista, na Bahia. O Blog do Redação conta que seus dois membros são Candioco e Francisco Viva, que faziam parte de uma banda chamada Taro que entrou em hiato, dando a eles a oportunidade de tocar esse projeto.

Tradição / Tradução é o primeiro álbum da dupla, que no entanto tem singles no Spotify lançados desde o ano passado — ao menos um deles entrou no disco. Pelo título e pelo que eles dizem no site oficial, a ideia do projeto parece ser de absorver diversas influências, especialmente as antológicas, e acrescentar a elas algo do presente. Verdade que existem muitos grupos que têm um objetivo parecido, mas a maneira como o cajupitanga faz isso nesse primeiro álbum me chamou bastante a atenção.

Dá pra perceber várias influências bem díspares ao longo do disco. A voz tranquila e o violão ancoram o som num cais bem brasileiro, mas as faixas que ficam só nisso foram as que eu curti menos. O mais comum (e que me pareceu mais legal) é quando a música sacode sobre várias marolas eletrônicas bem curiosas. Por exemplo, a segunda metade de “Nova”, que após um começo bem “voz e violão” é lavada por ondas muito suaves de sons eletrônicos. É um clima extremamente relaxante que me lembrou do Tape, um projeto sueco que, além do clima muito tranquilo, tem pouco a ver com o duo baiano.

Igualmente suave é “Aedo/Vaivém”, uma composição de ritmo bem lentinho, que começa com voz e sintetizadores mas vai incorporando violão tranquilo, percussões gentis e alguns efeitos vocais. “A Todos Nosotros”, a mais longa, é também um pouco mais animada, mas ainda bem sutil, com uma espécie de refrão instrumental. “Quase Santo”, por outro lado, tem um clima um pouco mais tenso, com acordes menores, guitarra distorcida baixo na mixagem e violões tocando lado a lado. E também lá na metade um efeito muito doido no vocal que faz parecer que seu som está com defeito. Me pareceu ser a que melhor representa esse disco muito interessante e relaxante.

Giovani Cidreira — “Saudade de Casa”, do álbum Nebulosa Baby

Na ativa desde 2014, Giovani Cidreira se tornou mais famoso em 2017 com o lançamento do excelente Japanese Food, um álbum de referência para o som independente brasileiro daquela época. E embora ele não tenha ficado calado de lá pra cá (lançou por exemplo um EP muito foda com a Josyara que apareceu no 10 do Mês de Março de 2020), Nebulosa Baby é o verdadeiro sucessor daquele trabalho, e avança vários passos em várias direções.

Nesta matéria do UOL, Cidreira conta que agora assina como Gio e que o trabalho também é composto por um álbum visual e por uma websérie. Todos eles falam sobre a relação do cantor, compositor e produtor com o bairro de Valéria, em Salvador, onde ele cresceu. Eu não conferi ainda a websérie ou o álbum visual, mas achei o disco bem foda por si só.

Primeiro, é um trabalho bem expansivo. As faixas não se prendem muito a estruturas tradicionais e frequentemente saem em por tangentes inesperadas, desembocando em passagens bem legais como a montanha de vocais no final de “Nebulosa”. Das 13 faixas, 3 são interlúdios de um minuto mais ou menos, um dos quais (“Saudades de Josy”) traz a Josyara mais uma vez. Ela é uma dentre inúmeras participações bem especiais, como Luiza Lian, Alice Caymmi, Ava Rocha, Obinrin Trio, Luê (na linda e triste “Claridades”) e até a Jadsa, cuja estreia apareceu por aqui no 10 do Mês de Março de 2021.

Todas essas colaborações dão certo, mas mesmo quando Gio aparece por si só, e mesmo quando ele trabalha numa estrutura musical mais fechada, o resultado ainda é lindo. Ouça por exemplo “Saudade de Casa”, que me remeteu aos Beatles via Clube da Esquina, com um refrão bonito e grudento, e um teclado bem daora no acompanhamento. Agora imagina um disco que pega essa faixa (a sétima, literalmente o miolo do álbum) e expande cada faceta dela para uma direção diferente: esse é Nebulosa Baby. Muito foda.

E esse foi o 10 do Mês de Julho de 2021. Novamente agradeço demais a leitura ou audição atenciosa. Aproveito pra lembrar que se você curtiu algum som que descobriu aqui (ou em qualquer lugar na real), apoie o artista da maneira que puder — comprando o disco, comprando algum merchan, curtindo e compartilhando o que eles fazem e, se possível, dando um salve para eles saberem que o que eles fazem é foda e importante. Esquecer disso é mais fácil do que parece, e ninguém nunca deveria.

Você também pode dar um salve pra mim se quiser recomendar algo que sai agora em agosto ou pra falar de algo que eu deixei passar. Nesse caso, o melhor lugar é o Twitter. Chama lá que a gente conversa enquanto a sua vacina não chega, ou enquanto a segunda dose não chega, ou pra planejar qual vai ser o primeiro show em que a gente vai quando puder.

A minha segunda dose tá chegando, e eu devo estar quase totalmente imunizado quando sair o 10 do Mês de Agosto de 2021. Vai ser interessante notar como esse processo afeta minha escolha musical — talvez eu queira só trazer música alegre? Talvez eu me sinta mais preparado para ouvir coisas tristes e volte a destacá-las aqui? Sei lá. Mas quero muito descobrir. Enquanto isso, sigamos de máscara, álcool-gel, distanciamento social e consciência de classe. Este último, aliás, para muito além da pandemia. Daqui a pouco a gente se fala de novo!

Quer mais? O 10 do Mês de Julho tá aqui, e o de Junho tá aqui. Ou então clique aqui e veja todos.

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Gustavo Sumares

Jornalista, roteirista, editor, revisor. Falo aqui sobre música, especialmente por meio do 10 do Mês!